O corpo foi abandonado pela mente, mas não adianta ter educação se os dois estiverem desconectados
Não há armadilha mais insidiosa do que permitir que corpo e mente se desconectem. Infelizmente essa é uma realidade muito comum, especialmente em uma sociedade que vai se organizando cada vez mais em torno da cabeça e se esquecendo progressivamente da materialidade do corpo.
A história da vida digital surgida nos últimos 20 anos pode ser resumida dessa forma: estamos cercados de tentações cada vez mais irresistíveis de partirmos para uma vida da mente (domada por uma tela de celular ou outros aparelhos), que se separa da vida do corpo, condenado eternamente à existência no plano físico.
Tenho uma amiga fora do Brasil – que é inclusive celebridade na internet, com centenas de milhares de seguidores – que é um exemplo dessa questão. Sua vida acontece hoje em torno do celular. Suas fotos nas redes sociais são incríveis e atraentes e recebem milhares de likes e compartilhamentos. Mas não mostram a tendinite assombrosa que a garota adquiriu, derivada do uso constante e repetitivo do aparelho. Também não mostram as consequências do sedentarismo que enfrenta, como fraqueza muscular e perda de calcificação óssea. Esses problemas só ela mesma e seu círculo de amigos pessoais sabem.
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A culpa, obviamente, não é só dela. Quem vive da internet ou da exposição na rede está especialmente exposto à tentação de desconectar a mente do corpo. Algumas pessoas conseguem resistir. Outras, não.
O fato é que desenvolver uma consciência corporal tornou-se um dos desafios mais importantes para saber viver. Esse é um dos aprendizados mais difíceis de se adquirir, especialmente porque a questão ou não existe, ou é negligenciada, ou é vítima de primeira hora da precariedade generalizada que assola a educação formal.
MOVIMENTO REBOLÁTICO
Nesse contexto, a tarefa de redescobrir a unicidade e inseparabilidade do corpo e da mente acaba ficando na esfera de responsabilidade de cada pessoa. No meu caso, já tive algumas epifanias reveladoras sobre esse tema. Por exemplo, vendo um espetáculo de dança da Pina Bausch.
Ou mais recentemente, descobrindo o trabalho do músico Matheus VK. Matheus é fundador do bloco de Carnaval Fogo & Paixão e um dos músicos mais talentosos da sua geração. Mais do que isso, é formado em psicologia e trabalhou por anos como terapeuta. No consultório, percebeu que muitas pessoas, especialmente adolescentes, estavam enfrentando uma epidemia generalizada de dissociação entre corpo e mente, vivenciando um profundo desconhecimento do próprio corpo.
Assim que deixou o consultório para se dedicar à música, Matheus criou o Movimento Rebolático, que produz um efeito de redescoberta da pélvis, primeira parte do corpo que em geral é abandonada quando mente e corpo se desconectam.
Matheus criou então o que pode ser visto como uma verdadeira terapia corporal para as massas. Nos seus shows, um dos seus hits é “Pélvis”, música com a qual conclama: “Quero ver geral mexer a pélvis, para lá, para cá, para lá, para cá”. O didatismo é eficaz e a resposta é imediata. Nesses tempos de excessiva conexão da mente, é preciso não só explicar que precisamos reabitar nossos corpos. É preciso desenhar. Ou melhor, cantar e dançar. E dar o exemplo, como Matheus VK faz no seu trabalho. Não há inteligência de verdade que prescinda da permanente descoberta do corpo.
Créditos
Imagem principal: Moises Sanabria