No sufoco, por Ricardo Guimarães

Aquele ar vendido nas prateleiras das igrejas, dos partidos políticos e das galerias de arte está acabando. Quem sabe a gente não entende o sentido dessa crise e cuida melhor do que nos mantém vivos?

Caro Paulo,

Conversando com a Lili sobre o ar, tema desta edição, ela disse que o ar é como o trabalho da dona de casa: só aparece quando falta [risos]. Eu entendi o recado, e concordei, principalmente pela compreensão que ela tem do que é cuidar do corpo e da alma da casa.

Daí me veio a ideia de não falar sobre o ar que o nosso corpo respira. Mas do ar que faz falta para nossa alma. O que existe no ar além de oxigênio, nitrogênio? O que Shakespeare quis dizer quando cantou que existe muito mais entre o céu e a Terra do que pode supor uma filosofia que ele chamou de vã?

Por que Miyamoto Musashi, o maior samurai de todos os tempos, disse que uma das nove condições para um guerreiro ser vitorioso era “perceber o que não pode ser visto”? (Aliás, vale a pena ler o belíssimo O livro dos cinco anéis, escrito no século 17, no qual o grande samurai registra seus aprendizados sobre estratégia e a preparação de um guerreiro para ter sucesso em cenários em que a vitória não está garantida.)

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Mas o que é tão importante que não pode ser visto, que a filosofia vã não consegue imaginar e faz tanta falta para a alma? Eu tenho uma pista para a resposta.

Lembra aquele vídeo Contexto de mundo que mostrei para você outro dia aqui na Thymus? Viralizou absurdamente. Só no YouTube hoje está com mais de 160 mil visualizações. E olha que o tema não é sexy, eu não sou nenhuma celebridade e a duração é de 11 minutos quando, segundo os youtubers, vídeo de sucesso tem no máximo 4 minutos.

Por que essa repercussão? Meu palpite: o vídeo mostra o que existe no ar além de oxigênio e nitrogênio, mostra o que não pode ser visto e que faz falta para a alma. Mostra o nexo, aquilo que não é uma coisa nem outra, mas que liga uma coisa à outra, construindo uma história, uma narrativa, um sentido, uma direção.

Ao perceber o nexo entre as coisas e entre os fatos, a alma se aquieta e o corpo começa a usufruir mais do prazer que os sentidos podem proporcionar, sem a sensação de estar traindo a alma. Isso é gratificante. Acho que de certa forma o vídeo faz isso. Ele resolve essa falta de ar que as almas estão sentindo atualmente e deixa o corpo mais confortável diante dessa loucura de possibilidades que a época está oferecendo.

Sufoco real

É uma época de transição profunda em que a ciência e a tecnologia estão jogando por terra muitas ilusões românticas que forneciam ar para nossas almas. Este cenário está questionando a noção herdada de certo e errado, de bom e mal, de justo e legal, de progresso e bem-estar, de individual e coletivo etc. E começa a revelar os verdadeiros dilemas de nossa civilização que estão caçando a eloquência de quem acreditava na vã filosofia (que acha que no ar só existe oxigênio e nitrogênio).

Aquele ar vendido nas prateleiras das igrejas, dos partidos políticos e das galerias de arte está acabando. Quem sabe, ao cair nesse sufoco real, a gente não entende o sentido dessa crise e não começa a cuidar melhor do ar que o corpo precisa para continuar vivo?

Que bom que estamos juntos para fazer as perguntas e abrir frestas por onde possa entrar um novo ar que satisfaça nosso corpo e nossa alma ao mesmo tempo.

Abraço do amigo
Ricardo

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Créditos

Imagem principal: Laurindo Feliciano

Laurindo Feliciano

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