Bianca Figueiredo encarou mais de cem dias de perseguição épica a um pesqueiro ilegal — em que deixou para trás três oceanos e um casamento

Nos últimos dias de fevereiro, a bordo do Sam Simon no oceano Índico, a bióloga paulista Bianca Figueiredo precisou tomar uma decisão: voltar para a Austrália, onde tudo – cerimônia, vestido, convites, noivo – estava pronto para o seu casamento, ou continuar no navio, na caçada ao pesqueiro ilegal Thunder ao longo da costa da África.

Fazia muito calor, quase 40 ºC, e o Sam Simon, uma das duas embarcações da organização ambiental Sea Shepherd que haviam partido em dezembro no encalço de barcos que pescavam merluza negra ilegalmente em águas internacionais, rumava às Ilhas Maurício para rea­bastecer e entregar à Interpol provas contra o Thunder – redes proibidas capturadas nas águas congelantes da Antártida. Bob Barker, o outro navio do grupo, perseguia o pesqueiro dia e noite havia mais de dois meses.

Foi então que o capitão do Sam Simon, o indiano Siddharth Chakravarty, 32 anos, decidiu que terminariam a campanha ao lado dos colegas do Bob Barker. E isso, Bianca entendeu, poderia levar ainda bastante tempo. 

O Thunder, desde 2013 na lista de procurados da polícia, tinha combustível para ficar pelo menos mais três meses no mar.

A decisão não era fácil. Mas lá, no meio do oceano, com outros voluntários do mundo todo, a missão havia se tornado crucial para ela. Pediu a Chakravarty autorização para usar o telefone por satélite e ligou para o pai, no Brasil. Na conversa, falou sobre seu casamento, que estava marcado para o dia 2 de maio. O pai assegurou que ela estava tomando a decisão certa.

“Tive que romper meu relacionamento, e foi muito difícil”, Bianca contou por Skype no mês passado, agora a bordo do Bob Barker, em Bremen, na Alemanha, enquanto se preparava para uma campanha contra a caça das baleias-­piloto nas Ilhas Faroé. “Naquele momento, pensei: minha vida pessoal não é tão importante quanto o que estou fazendo aqui.”

Jornada inesperada

Bianca zarpou de Wellington, na Nova Zelândia, no dia 8 de dezembro de 2014, esperando voltar para casa em seis semanas, previsão inicial da operação Icefish – que, ela não podia imaginar, se tornaria a mais longa da história da Sea Shepherd, uma ONG fundada em 1977 que patrulha os mares por conta própria, sem ligação com governos.

A própria escolha de focar nas merluzas negras foi quase um acaso. A luta histórica da Sea Shepherd na Antártida é contra a caça às baleias, ainda legal em alguns países. Porém, uma decisão da Corte Internacional de Justiça de maio de 2014 cancelou a temporada deste ano no Japão. Abriu-se assim espaço para que o grupo prestasse atenção a alguns pesqueiros suspeitos que navegavam na região. “Eram seis navios ilegais, numa vastidão que é a Antártida”, conta Bianca. “Nossa ideia era descer e ver o que a gente achava.”

Práticas de pesca ilegal, não declarada ou não regulamentada, são responsáveis por retirar dos oceanos algo entre 11 milhões e 26 milhões de toneladas de peixes por ano, quantidade que tem valor estimado entre US$ 10 bilhões e US$ 23 bilhões, de acordo com um relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. O consumo de merluza negra, também chamado bacalhau de profundidade, é recente: só ficou popular depois da década de 70. Cerca de 55 barcos ilegais pescavam 32 mil toneladas de merluza negra no auge desse tipo de pesca, em 1997.

Caiu na rede

O Thunder e outros quatro barcos procurados pela Interpol utilizam uma variação bastante predatória da gillnet, tipo de malha em que os animais ficam presos devido ao seu próprio movimento: as redes, cada uma delas com cerca de 25 quilômetros, ficam a uma profundidade de 2 mil metros, com cabos-guias em cada extremidade. “Essas redes são feitas de um nylon fino, e os peixes vão se enroscando”, explica Bianca. A técnica é proibida pela Convenção para Conservação dos Recursos Vivos Marinhos Antárticos desde 2004.

O combinado entre os navios da Sea Shepherd era de que, caso os pesqueiros fossem encontrados, o Bob Barker faria a perseguição enquanto o Sam Simon trabalharia para recolher equipamentos ilegais. No dia 17 de dezembro, quando o Bob Barker encontrou o Thunder e começou a perseguição, o Sam Simon recebeu a posição das boias pelo GPS do Barker. A posição era exata. As redes estavam lá quando o Sam Simon chegou, dez dias depois, para começar a retirada. Não bastasse o próprio trabalho ser difícil e inédito para a organização, a operação foi realizada em meio ao oceano Antártico, com neve quase o tempo todo e icebergs. As redes eram mais pesadas do que o esperado e danificaram duas vezes o equipamento instalado para retirá-las, que estava apto para aguentar 4,5 toneladas.

A tripulação acreditava que em 24 horas puxaria tudo. “A gente fez uma dinâmica muito louca de trabalhar 4 horas e dormir 4 horas, alternadamente”, ela conta. Mas a tarefa se revelou mais complexa do que o previsto. Só a primeira rede levou cinco dias para sair do mar. O trabalho todo foi de quatro semanas. Além do peso das redes, da tensão na corda e das condições climáticas, havia muitos caranguejos vivos na malha e o grupo não queria que os animais fossem esmagados. Bianca era uma das responsáveis por libertar os king crabs, caranguejos de 4 quilos, e devolvê-los ao mar.

Os peixes não tiveram tanta sorte: das 1.080 merluzas negras que o grupo tirou da água, apenas uma estava viva. Grande parte estava em estado avançado de putrefação. Os que estavam em condições eram analisados por Bianca e por uma colega veterinária. Muitos eram fêmeas. “Ver o saco de ovas, cheio, isso foi o que mais me chocou”, conta a bióloga brasileira.

O medo, Bianca diz, era vencido pelo cansaço. Das 4 horas de folga, boa parte ia para alimentação e higiene. Dormir mesmo, menos de duas a cada turno. Entre palavras de encorajamento e o ritmo forçado, os voluntários da Sea Shepherd tiraram 72 quilômetros de rede do mar, com quase 50 toneladas de merluzas negras, além de outras espécies de peixes e crustáceos. Também foi preciso distribuir toda a rede uniformemente pelo navio, para evitar que o Sam Simon virasse.

Simpsons pró-baleia

Natural de Campinas, Bianca tem 31 anos e estudou biologia na Pontifícia Universidade Católica de sua cidade natal. Fez estágio no Projeto Boto, na Amazônia, e no Centro de Reabilitação de Animais Selvagens, em Jundiaí. “Eu curtia muito, mas sempre achava que eu poderia sair da zona de conforto e fazer mais, sabe?”, ela lembra.

Em 2006, quando estava terminando a faculdade, Bianca se mudou para Ilhabela. Foi na ilha paulista, em 2009, que teve os primeiros contatos com a Sea Shepherd Brasil, através de amigos que estavam envolvidos com o grupo desde o começo da década. Em 2012, saindo de Ilhabela depois do fim de um relacionamento, aceitou a proposta de uma amiga de se mudar para a Austrália, pensando em procurar um mestrado. Lá, visitou universidades, curtiu bares, mergulhou, fez amigos, visitou a Nova Zelândia. E, entre tudo isso, também procurou a Sea Shepherd local. Havia uma na sua cidade, Byron Bay.

Como voluntária em terra, Bianca arrecadava dinheiro e montava estandes da organização. Em 2013, a campanha de defesa das baleias foi intensa, com múltiplas colisões entre os navios da Sea Shepherd e baleeiros japoneses. As embarcações voltaram precisando de reparos e Bianca mandou um e-mail para o responsável pelo recrutamento dizendo que poderia ficar um mês ajudando. Aceita, partiu para Melbourne, a mais de 1.500 quilômetros, levando apenas uma mochila.

Bianca foi trabalhar no Sam Simon, a embarcação mais nova do grupo. O barco foi comprado do governo do Japão às escondidas em 2012, com dinheiro doado por Sam Simon, um dos criadores dos Simpsons, e só revelado quando já estava reformado e pronto para enfrentar os baleeiros — do próprio Japão. Logo Bianca recebeu convites para estender sua permanência no grupo. Daí para o início da caçada ao Thunder seria apenas um passo.

Tensão

Depois da longa operação de retirada das redes, a tripulação do Sam Simon soube que outros três navios na lista dos ilegais estavam por perto. De volta ao mar, encontraram dois, os pesqueiros Kunlun e Yongding. O Yongding não demorou a atacar o Sam Simon. Colocou-­se na rota do navio e acelerou.

O capitão avisou que colidiriam. Faltavam instantes, segundos. Bianca se segurou em uma mesa. A poucos metros, no entanto, o pesqueiro desviou. E fugiu. O Sam Simon ainda perseguiu o Kunlun por algum tempo, antes de decidir que a prioridade era ajudar o Bob Barker na captura do mais temido deles, o Thunder. (Em tempo: o Kunlun foi capturado em Phuket, na Tailândia, em março; e o Yongding, em Cabo Verde, em maio.)

O Sam Simon mudou de rota, saindo da Antártida, e foi ao encontro do Bob Barker. Era fevereiro. Com o casamento oficialmente cancelado, Bianca subiu ao convés. O mar era o mais importante. Depois de passar pelas Ilhas Maurício, a embarcação desceu pela costa leste da África, contornou o Cabo da Boa Esperança e reencontrou, os outros dois navios na costa oeste do continente, já no Atlântico. Aquilo parecia não ter fim.

Na manhã do dia 6 de abril, às 6h39, após 110 dias de perseguição, o Thunder avisou no rádio que estava afundando. A primeira reação entre os voluntários da Sea Shepherd foi de descrença. Fazia calor, a água estava calma. Não é claro o motivo do naufrágio: especula-se até que possa ter sido intencional.

Botes salva-vidas com a tripulação do Thunder foram colocados no mar: 30 indonésios e DEZ oficiais, que eram chilenos, espanhóis e um português. O Sam Simon foi encarregado do resgate, enquanto tripulantes do Bob Barker tentavam recuperar provas. O Thunder virou por horas e, quando finalmente ficou na vertical, afundou em instantes. Foi uma experiência chocante, Bianca conta, e confusa, com sentimentos misturados. Primeiro, de que aquele navio nunca mais causaria destruição. Depois, que estava afundando cheio de óleo.

O retorno

Com os 20 membros da tripulação do Sam Simon se revezando para vigiar os 40 do Thunder, o navio partiu para o porto mais próximo, na ilha de São Tomé e Princípe, onde chegou à 1h30, depois de mais 10 horas. Bianca era a única que falava português e teve que conversar com os oficiais da ilha.

Lá, a tripulação do Thunder desembarcou. Os indonésios foram repatriados, alguns dos oficiais foram presos. “Bateu um sentimento de dever cumprido”, Bianca diz. Quando o capitão reuniu a tripulação para falar sobre a jornada, ela sentia o coração batendo na garganta. “Nós éramos 59 pessoas entre 7 bilhões. Essa sensação é incrível, e ao mesmo tempo um sentimento de humildade muito grande”, finaliza.

Depois de São Tomé e Príncipe, os navios foram para a Europa, em uma travessia que levou mais três semanas. Todo mundo ficou mais quieto, havia um sentimento de vazio. “Parecia que a gente havia perdido um pouco do propósito”, conta. Parte dos altos e baixos da vida de ativista. E para o futuro? Bianca quer fazer mestrado e quem sabe um dia usar sua experiência de guerrilha no Brasil. Mas por ora, está pronta para férias. E no aguardo de uma missão para voltar ao gelo da Antártida.

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