Nunca estamos sós

por Amyr Klink
Trip #279

Ao me isolar de todos por meses, percebi que nunca estive só. A convivência é inevitável – e deslumbrante

É engraçado falar sobre convivência, já que fiquei conhecido entre os amigos como o cara que só anda sozinho. Foi assim que, em 1984, fiz a minha primeira travessia oceânica, solitário em um barquinho a remo. Foi uma experiência muito engraçada. Logo que ancorei na prainha da Espera, na Bahia, vindo da costa africana, notei um pescador parado ao lado. Ele ficou surpreso quando viu meu barco, ficou olhando e falou: “Como foi a pescaria?”. Não sabia o que responder, havia chegado de uma travessia de cem dias e 6 horas, 7 mil quilômetros percorridos sem falar com um ser humano. “Não pesquei nada.” Antes de ir embora, ele respondeu: “A vida é assim. Tem dias que não dá nada”.

Eu estava muito feliz, mas não porque tinha vencido o Atlântico sozinho, e sim porque tinha cumprido um plano projetado durante quatro anos, tempo em que só ouvi que iria morrer. Não morri e, dentro da cabine, com toda essa felicidade, estava vestindo a última camiseta e a última calça que não tinham sal quando escutei um toc, toc, toc. Era o mesmo pescador, simples e sorridente, em um barquinho caindo aos pedaços. “Desculpa, mas é o único peixe que tenho para te dar”, falou antes de me entregar duas sardinhas fedorentas. Foi o presente mais valioso que ganhei na vida. Entendi ali que, embora estivesse há cem dias distante de todo mundo, nunca estive realmente sozinho.

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Assim que pisei na areia quente e fiquei olhando para o barquinho ancorado, pensei: “Caramba, cada centímetro deste barco tem o esforço de alguém que acreditou, ajudou, lixou, laminou, abriu um furo, colocou um parafuso…”. Ficar longe das pessoas me fez perceber a riqueza que é a convivência. A beleza de viver em uma sociedade, de fazer parte de um grupo, é essa: nós temos milhares de provedores invisíveis, gente que não agradecemos e reconhecemos.

Foram quatro anos convivendo com pessoas que me ajudaram a fazer aquele plano funcionar. Esse barquinho está em São Paulo hoje, é lindo de morrer e adoro tudo o que ele me ensinou.

Abrace um problema

A experiência de atravessar o Atlântico há 34 anos foi incrível. Fiz muitas outras viagens depois – mais de 40 só para a Antártida –, construí barcos incríveis, estive em lugares espetaculares, mas o mais importante que aprendi veio da observação de um engenheiro, quando eu ainda estava tentando desenhar o primeiro barco. Ele falou: “Rapaz, com esse barquinho aí você vai morrer”. Respondi: “Eu sei, escuto isso mil vezes por semana. Você também vai, todos vamos”. Ele retrucou: “Não, não. Se você quer chegar ao Brasil remando, seu projeto está errado. Você está fugindo do problema. Fez um barquinho à prova de capotagens, mas é impossível um barco de 5 metros por 1,5 metro não capotar em ondas de 10, 15 metros. Quero desenhar para você um feito para capotar, e você virá da África capotando que nem um alucinado até o Brasil. Você tem que abraçar o problema”. Ele estava certo.

No dia em que contei sobre ir para a Antártida num veleiro ao meu melhor amigo, que remou comigo por seis anos na raia olímpica da Cidade Universitária, em São Paulo, ouvi de novo: “Tá louco? Você vai morrer. Se congelar, você pode ficar preso um ano lá. Imagina que desgraça!”. Nessa hora me deu vontade de ir ao banheiro e sempre temos um raciocínio um pouco mais criativo quando estamos lá.

Naquela época, nada dava certo na minha vida. Tinha problema com o banco, havia oficiais de justiça duas vezes por semana na porta da minha casa, tinha problemas com a vizinha, com o despachante... Sentadinho no banheiro, pensei: “Ficar preso em um lugar onde ninguém te alcance durante um ano pode ser o paraíso. Imagina que maravilha!”. Abracei o problema e acabei ficando 15 meses sozinho. E foi quando o barco congelou — entre março e novembro eu seria o meu único provedor — que enxerguei com clareza aqueles milhares de provedores.

Estamos vivendo um momento muito triste e não é só a política brasileira, Bolsonaro, Haddad… Não é a polarização. Nós estamos vivendo o fim de um processo muito longo de individualização. Estamos babando nas novas formas de comunicação e só pensamos no próprio umbigo, em quantos likes temos. Precisamos entrar numa era deslumbrante e maravilhosa, em que a ideia seja conhecer o outro, quem está ao nosso lado. Descobri essa experiência da convivência aparentemente fugindo dela.

Temos uma cultura de se apegar aos bens, mas riqueza genuína é a experiência que vivemos com as coisas que juntamos e com as pessoas com quem convivemos. Então o que desejo para vocês é que convivam.

Créditos

Luiz Maximiano

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