Índio quer apito

por Bruno Costa
Trip #191

O índio Korubo completa 10 anos morando no alto de uma árvore da Esplanada dos Ministérios

Não é apenas Brasília que comemora uma efeméride em 2010. Nos 50 anos da capital nacional, o índio Korubo completa 10 anos morando no alto de uma árvore da Esplanada dos Ministérios, sem chamar atenção da imprensa. Ele caça no parque da Água Mineral como se estivesse em sua aldeia amazônica. Caminha pelo Eixo Monumental com um tatu nas costas e flechas nas mãos. Tem outras cabanas em árvores perto do Palácio do Planalto e do Tribunal de Contas da União. Diz que luta pelos direitos dos índios e só volta para a Amazônia quando conquistar uma vida mais digna para o seu povo.

Pele vermelha, poucos cabelos compridos, Korubo só anda descalço, e além das pinturas e das penas, usa um calção surrado. Apesar de estar no centro da capital federal, ele tem quase tudo o que precisa para a rotina de índio. Corta o bambu dos fundos dos Ministérios, à beira do Lago Paranoá. Colhe o Jenipapo no Parque da cidade para preparar a mistura das pinturas. Usa sementes para os colares. Acende o cachimbo e invoca o Grande Espírito para trazer segurança.

Dentro da sua cabana acumula dezenas de edições dos jornais da Câmara, do Senado e dos Ministérios. Surpreende pela quantidade de informação que tem e pela articulação das ideias que expõe ao se expressar em um portunhol sem artigos e concordâncias. Conhecendo sua história, sua resistência parece não ter limites. Mas dez anos já se passaram e Korubo está cansado. E quando os curiosos param para conversar e perguntam pelos seus irmãos, Korubo volta para a árvore e chora de saudade.

Sua tribo é nômade?
Sim, minha tribo é nômade porque ela não permite o contato com a sociedade civil branca. Ela vive no Vale do Javari, na divisa entre o Acre e o Amazonas. Também faz fronteira com os países Peru, Bolívia e Colômbia.

Então os Korubos costumam atravessar a fronteira?
Como a tribo é nômade eles costumam atravessar a fronteira. Depois, quando a comida fica escassa nos outros países, eles voltam para o Brasil. E vivem nessa rotatividade. A comunidade indígena Korubos não quer a civilização.

Você foi raptado por integrantes de uma empresa madeireira estrangeira para ser usado como guia nas expedições de desmatamento. Como foi essa experiência?
A Amazônia é cheia de madeireiras estrangeiras, ONGs estrangeiras. Quando eu fui raptado, com cinco anos de idade, fui forçado a conhecer a civilização do branco. E eu costumava comer apenas caça: paca, tatu, capivara... E toda carne era comida crua, não era assada. Porque a comunidade indígena de lá tem uma cultura de prática do canibalismo. Eles não fazem fogo para não chamar a atenção dos brancos. Sabe-se que onde tem fogo e fumaça, tem índio. Para não ter o contato com o branco, melhor comer o alimento cru. E eu mantive esse hábito. Quando fui levado para a sociedade do branco me senti estranho por ter que usar roupa, ter que me adaptar às regras deles: diziam o que se pode fazer, o que não se pode fazer. Eu ficava revoltado. Então eu decidi: “Eu sou índio e como índio vou continuar.”

Com que idade isso aconteceu?
Quando tinha 13, 14 anos. Ficava muito revoltado.

Você continuou tendo contato com a sua tribo, porque você entrava na mata pra mostrar onde estava a madeira...
Sim! Quando eu cheguei à idade de trinta anos, houve uma briga interna (com os madeireiros). Aí eu falei: “Bom, aqui nós vamos romper. Eu não preciso de vocês e vocês também não precisam de mim. E eu vou voltar para a minha tribo.” Aí eles falaram pra mim que se eu voltasse para a minha tribo eu correria risco de morte. E eu falei: “Eu não estou nem aí. Se é para morrer, morro junto com minha tribo índio.”

"Quando fui levado para a sociedade do branco me senti estranho por ter que usar roupa, ter que me adaptar às regras deles: diziam o que se pode fazer, o que não se pode fazer. Eu ficava revoltado. Então eu decidi: 'Eu sou índio e como índio vou continuar.'"

E como você reencontra sua tribo?
Então eu peguei minhas coisas, as únicas coisas que me interessavam: arco e flecha, e sumi, desapareci. Aí quando fui para o Vale do Javari, eu sabia, por meio das estações e da lua, quando era o tempo da primavera, do outono, e com isso onde teria abundância de alimento naquele período. Onde estivesse alimento, lá estaria minha tribo. E eu fui: “Nesse rio deve estar minha comunidade.”

Como os índios receberam você?
Quando cheguei, eu gritava para me comunicar: uh! uh! uh!.  Minha comunidade quando me viu ficou surpresa. Porque eu tomava banho com sabão cheiroso...  alguns outros cheiros que eu usava... Aí eles me rodearam, todo mundo me rodeou. Foi quando eu falei em dialeto índio. Aí eles me perguntaram: “Onde você aprendeu esse dialeto?” Aí eu falei pra eles: “Vocês se lembram de uma criança que sumiu aqui da tribo? Há muitos anos, quando vieram aqui brancos garimpeiros?” “Sim, nós lembramos.” “Era eu. Eles que me roubaram. Agora eu estou voltando aqui.” Aí eles me falaram: “E como você se sente andando com a sociedade dos brancos?” Aí eu falei: “Eles querem dominar muito a pessoa, dizendo ‘faça isso!’, ‘faça aquilo!’. Você só tem que obedecer, obedecer, obedecer. Eu não gosto. Por isso, eu sou índio, e eu vim aqui de volta para a tribo.” Aí eu contei à sociedade indígena como o branco vive. Eles têm carro, eles têm luz, eles têm cozinha... Aí cada vez que eu contava a eles, eles ficavam assombrados. Diziam: “Como eles podem comer alimentos cozidos?” Eles ficavam muito assombrados porque tinham medo que eu fizesse os brancos contatá-los através de mim.

Aí houve uma briga interna dentro de minha comunidade indígena. Havia um povo que me apoiava e havia outro povo que era contrário. Aí diziam assim: “Se ele fica com a gente, por causa dele o branco vai entrar aqui.” E como eu falei que os brancos usavam televisão, luz, eles disseram que tudo isso ia ser levado pra eles e nosso povo ia acabar morrendo.

E outra turma dizia: “Ele é nosso irmão, nosso parente! (Esse termo é usado por índios de diversas etnias, e se refere a qualquer outro índio.) Ele veio aqui para nos dar uma orientação.” Então por causa dessa briga interna que eu estava causando, eu falei pra eles: “Bom, eu estou vendo que vocês estão brigando por minha causa. Eu não quero que a tribo brigue, se divida. Vocês têm que ser tranqüilos, pacíficos. Então eu vou embora.”

E eu tinha visto que o garimpeiro ia para aquela região e colocava mercúrio nos rios. O índio morre com mercúrio. Aí eu disse: “Eu vou à cidade dos brancos para tirar o garimpeiro daqui. Eu vou para lá e vou lutar com a autorização de vocês.” E eles disseram: “Tá bom. Pode ir.”

Você vai à cidade representando os Korubos na luta contra os garimpeiros. Isso no Amazonas?
Sim. Aí eu cheguei no Amazonas. No Amazonas eu cheguei numa cidade e disse: “Estou procurando a FUNAI. Onde fica a FUNAI?” E a FUNAI estava fechada naquela cidade. Então havia outra organização (que tratava da questão indígena), ONGs, havia COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, sem fins lucrativos, fundada por lideranças indígenas). Então eu fui à COIAB. Eles me deram hospedagem. Eu estiquei uma rede e dormi. Aí falei pra eles: “Eu preciso expulsar os garimpeiros da minha tribo indígena. Tem muita mineração e o mercúrio está acabando com o povo. Aí a COIAB falou: “Tem que mobilizar a Polícia Federal.” Mas como os índios eram “não-contatados” (ainda não estudados por antropólogos e sem contato com a FUNAI), a COIAB não queria contatar, diziam: “Eles, por si mesmos, têm que vir até nós. Não podemos obrigá-los.” E então se passaram anos e anos e anos. E eu falei: “Bom, eu vou embora. A COIAB não está me ajudando, está me enrolando.”

Você esteve nas manifestações contra as comemorações oficiais dos 500 anos do descobrimento, em Porto Seguro, na Bahia, no dia 22 de abril do ano 2000. Na ocasião houve repressão policial, 141 índios foram presos e muitos foram agredidos. Como você foi parar lá?
Eu fui para uma manifestação que tinha aqui em Brasília. Aqui em Brasília e em Porto Seguro. Ano 2000. Então quando vim no ano 2000, tinham fretado navios, carros, tudo para trazer os índios. Eu aproveitei e disse: “Eu vou representar a minha tribo Korubo nessas manifestações. Vou dizer que lá está havendo muita mineração. Tem que expulsar os mineradores. Vamos levar todas as denúncias que acontecem nas aldeias.” Eu vim. E quando cheguei em Brasília, procurei a FUNAI: “Onde está a FUNAI aqui em Brasília?” E o motorista do transporte falou: “Não. O frete foi fretado para deixar os índios na Bahia, por causa das comemorações do descobrimento do Brasil.” E eu não tinha tempo de procurar a FUNAI aqui em Brasília. Então fui pra Bahia. Na Bahia juntamos o acampamento e avisaram: “Vai haver discussão com deputados e senadores pra decidir se o Brasil foi descoberto por Cabral.” E havia outra tribo de índios que não concordava: “Não, isso é mentira! Nós não aceitamos que o Brasil foi descoberto por Cabral. Brasil já era a morada dos índios.” Aí eles foram brigar sobre essa questão de quem descobriu o Brasil.

Um comandante da Polícia Militar já tinha mandado expulsar os índios dessa área. Então os índios se reuniram e organizaram uma manifestação contra os 500 anos do descobrimento. Quando começamos a marcha, apareceram helicópteros, a cavalaria... Policiais do Batalhão de Choque disparavam bombas e muitos índios ficaram feridos. Eu fiquei ferido na perna, saí com muito sangue. E nós protestamos contra aquela violência: “Como o governo FHC pode tratar os índios assim?”

"Os índios são isolados e a FUNAI não tem como protegê-los da mineração. Estão bebendo água e comendo peixes com mercúrio e todo o povo está morrendo. Senadores e deputados prometeram me ajudar, mas tudo ficou engavetado. Fiquei aqui durante 10 anos. Eu fiz minha casa em cima da árvore."

Foi então que você decidiu que precisava ficar em Brasília?
Eu voltei da Bahia para Brasília. Eu pensei: “É em Brasília que está a FUNAI, o Congresso Nacional. Vou levar minha denúncia para que eles possam ajudar.” Quando cheguei aqui em Brasília, fui para a FUNAI. A FUNAI não me recebeu: “Nós não podemos ajudar você.”

Então eu fui ao Congresso e falei ao senador: “Os índios são isolados e a FUNAI não tem como protegê-los da mineração. Estão bebendo água com mercúrio, comendo peixes com mercúrio e todo o povo está morrendo.” Senadores e deputados prometeram me ajudar, mas tudo ficou engavetado.
Eu fiquei aqui durante 10 anos. Eu fiz minha casa em cima da árvore.

Que árvore?
Aquela ali em cima.

Aquela casa em cima da árvore é sua?
Sim! É.

Isso foi quando?
Em 2000.

Você mora naquela árvore desde 2000?!
Sim! Então eu fiz minha moradia. Depois vim aqui no Congresso cedo. Preparava meu alimento. Peguei minhas coisas e fui falar com os senadores e deputados: “Eu tô precisando de ajuda.” E os senadores: “Você tem a FUNAI. Tem que ir para a FUNAI.” E eu falei: “A FUNAI não está dando proteção.”
Aí eu fui à Polícia Federal (que tem entre suas atribuições a proteção do índio e de seu patrimônio, além de buscar solucionar situações de conflito em que estejam envolvidos os índios) e fiz uma denúncia lá. E nada adiantou. Eu falei: “Eu vou ficar por aqui até ser ouvido.”

Durante dez anos eu estou aqui sozinho... eu pedia ao Grande Espírito... eu fazia minha pajelança com minha maraca (instrumento musical)... eu sempre falava: “Grande Espírito, eu estou aqui sozinho... eu quero que um dia a tribo esteja junto comigo... Então eu sozinho... vinha o período de chuva... eu lembrava da luta contra os garimpeiros... depois vim até aqui a cidade dos brancos e ninguém liga. Eu quero que um dia minha tribo esteja aqui junto comigo, nessa luta.”

Aí passava 2004, 2005, 2006, todo mundo que aparecia falava: “Índio, tu tá sozinho. Cadê tua tribo? Cadê tua tribo?” E agora que as tribos estão aqui comigo, e eu realizo esse sonho de ter todo mundo aqui junto comigo, aí as pessoas também não gostam: “Os índios estão invadindo a terra da Esplanada.” Mandam a polícia para nos expulsar às quatro horas da manhã... mandam as Forças Armadas... aí eu falo: “Se eu tô sozinho, eles não gostam. Se eu tô com meu povo, eles também não gostam. Aonde vamos ficar?”

"Todo mundo me falava: 'Índio, tu tá sozinho. Cadê tua tribo?' E agora que as tribos estão aqui comigo, as pessoas também não gostam: 'Os índios estão invadindo a terra da Esplanada.'"

Quando a polícia invadiu o acampamento?
Numa madrugada do mês de abril. Vieram com cachorros, armados. As crianças chorando, tudo escuro. Ameaçaram. Ficamos. Pedimos ajuda. Resistimos. Eles foram embora.

Se eu tô sozinho, eles não gostam. Se eu tô com meu povo, eles também não gostam. Lutei sozinho... andei por essas embaixadas, França, Suíça, Alemanha, China, Japão, Coréia, África, todas essas embaixadas... entregava cartas aos embaixadores.

O que você pedia?
Pedia: “Dê proteção ao índio.” Porque o povo índio do Brasil não tem representante no Congresso. Nós queríamos um segundo Juruna (Mário Juruna era xavante, do Mato Grosso, e se tornou o primeiro deputado federal indígena pelo PDT-RJ, entre 1983 e 1987. Morreu por complicações do diabetes em julho de 2002, em Brasília.). Juruna morreu. Não tem outro representante. Por causa disso o povo índio está sendo massacrado.

Aí eu falei: “Esta carta, manda para as Nações Unidas, para Genebra.” “Está bem. Vamos mandar tua carta para Genebra, índio. Lá tem um escritório indígena.”

Aí, em 2007, a Assembleia Geral da ONU aprovou um documento para os índios (a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Não é lei ou tratado internacional, mas reconhece direitos fundamentais. Diz respeito à participação política e ao direito a terra, territórios e recursos naturais, e a uma nova postura dos governos em relação aos índios. O Brasil votou a favor e se comprometeu com as diretrizes da Declaração.). E essa carta foi distribuída para todos os países que têm tribos indígenas, para que respeitassem o documento.

Aí então me lembrei: “Finalmente o Grande Espírito mandou proteção para o índio.” Mas quando chegou aqui no Brasil, o Brasil não cumpre a Declaração. Aí os senadores, os deputados falaram: “Não, aqui no Brasil o índio está tutelado ao governo federal.” Aí eu fiquei muito triste.

Tem ainda a Convenção 169 (da Organização Internacional do Trabalho/OIT, sobre os direitos fundamentais dos povos indígenas e tribais) da qual o Brasil é signatário.
Aí outros parentes vinham e também falavam: “Nós temos outro documento, da OIT, uma Resolução 169, que protege os índios.” E eu fui com meus parentes mostrar que a Convenção não era respeitada. Quando chegamos lá, na OIT, eles falaram: “Esse documento o Brasil também não respeita.”

Então, eu falo para as lideranças caciques aqui do Acampamento: “Nós não temos proteção. Eles vão acabar com a gente.” Aí os índios parentes quando chegam aqui sempre me perguntam: “Korubo, como está a negociação no Congresso sobre os nossos problemas indígenas? Como está a conversa sobre a nossa saúde?” Da saúde desviaram 200 milhões. E não tem ninguém para explicar onde foi parar esse dinheiro.

Sobre a educação também. Não há uma educação para os índios, há uma educação com pouco recurso. Os professores das aldeias dão aulas e não recebem seus salários. Fica por isso mesmo.

E agora vocês lutam pela revogação do Decreto 7.056, que prevê uma reestruturação da FUNAI, mas que já levou ao fechamento de diversas unidades no Brasil, deixando os índios ainda mais abandonados.
Os parentes perguntam: “Korubo, como podemos fazer?” Aí eu falo pra eles: “Nós temos que continuar com a tutela da FUNAI. A FUNAI não pode acabar, tem que continuar viva. A FUNAI está prevista na Constituição. Artigos 131 e 132 garantem a existência da FUNAI. Vamos lutar pela FUNAI!” E os parentes concordam: “Sim, vamos tirar o presidente da FUNAI porque é ele que está querendo acabar com a FUNAI.”
Talvez o presidente que entre depois, entre para reestruturar a FUNAI, não para acabar. Esse Decreto 7.056 é para acabar com a FUNAI.

Falei para os parentes: “Nós temos vida, nós temos força. Vamos acampar aqui e continuar lutando!” E nós estamos aqui acampados há cinco meses já. É a primeira vez na História que a comunidade indígena está acampada.

E, veja bem, nós estamos agora esperando pra ver quem vai ser o próximo presidente da república no palácio do planalto. Porque hoje, na saúde indígena, por exemplo, medicamentos vencidos estão entrando nas aldeias. Os índios não sabem ler ou escrever e acabam tomando medicamento vencido. E morrem.
Aí eles dizem que foi uma doença, o índio não resistiu e morreu. A mortalidade aumentou. E nós índios ficamos preocupados... por isso eu falei para os índios aqui que vamos continuar acampados para que as autoridades do legislativo, executivo, judiciário e do Itamaraty, nos atendam.

Você costuma ler os jornais, como vê a repercussão da mídia sobre a questão indígena?
Os meios de comunicação não ajudam a gente. Pedimos qualquer tipo de ajuda, de comunicação que possa levar às autoridades as nossas reivindicações. O mês passado nós marcamos uma audiência com o governo Lula (em março/2010). Até hoje ele não quis nos receber. Nós temos esperança de reverter esse quadro a favor do índio, mas apenas com a esperança do Grande Espírito Tupã.

Eu, como representante dos índios isolados, continuo lutando. E eles continuam lutando. Falei para um representante do congresso: “Nem 1% dos índios tem faculdade. Como pode ser incluído na sociedade? A empresa pergunta: ‘Índio, você fez Ensino Médio? Tem faculdade? Então não tem trabalho pra você.’”
Então eu falei para os índios: “Parentes, nós vamos sair da tutela da FUNAI somente quando houver 10% dos índios com faculdade. Mas enquanto o povo não estiver capacitado, vamos continuar na tutela. E vamos pedir socorro. Aqui existem tantas embaixadas... vamos continuar lutando pelos nossos direitos. Se o Brasil não quer resolver, vamos levar as denúncias para fora do país.

O que vai acontecer quando os seus parentes índios forem embora?
Eu vou ficar triste... Porque a gente convive... Eles até fazem convite para mim: “Bora, para minha tribo no Maranhão,” “Bora para a minha tribo no Xingu”, “Bora pra lá!” Aí eu falo pra eles: “Eu não posso ir. Porque o poder político está aqui em Brasília. A caixa preta do povo indígena está aqui. Se não ficar alguém aqui, eles vão aprovar as leis a favor deles.” Aqui lutamos pela Lei 6001, de 1973 (Estatuto do Índio, regula a situação jurídica dos índios, com o propósito de preservar sua cultura). Porque na época da Ditadura Militar os militares mandaram matar muitos índios. Eles chegavam e diziam: “Aqui nesta área não tem que ter índio. É do Exército! Se tiver índio pode matar!” Muitos índios foram mortos. E essa denúncia foi levada a Genebra, na sede da ONU: “Brasil está matando os índios.” E o governo militar foi chamado para a ONU e as Nações Unidas fizeram criar a Lei 6001 para proteger os índios.

A lei 6001 está ameaçada?
Essa lei o Congresso está querendo acabar. Sempre digo aos meus parentes indígenas: “Vamos continuar lutando por essa lei porque é a única proteção que nos dão.”

Já tem deputado querendo criar novo estatuto porque esse não favorece o branco. Quer favorecer mineiro, garimpeiro, fazendeiro, grileiro. Nós temos que continuar defendendo o Estatuto da Lei 6001.

Os índios perguntam: “Quais são os deputados?” “Deputado tal, gabinete tal...” E todos os índios entram lá. E perguntamos: “Deputado, por que você está querendo fazer isso com a gente?” E então eles vão e reprovam o projeto de lei do novo estatuto. E esse processo se repete o tempo todo.

Por isso eu digo aos parentes: “Eu não posso aceitar o seu convite. Porque se eu saio daqui não vai haver quem cuide das nossas leis. Quando estivermos firmes e fortes, com autoridades que gostem de proteger o índio, nós vamos poder dizer que estamos capacitados.”

Antes do Juruna morrer, ele dizia pra mim: “Korubo, vamos continuar lutando por nossa FUNAI. Nossa FUNAI é nosso pai, nossa mãe. É a única instituição que nos protege. Não vamos deixá-la morrer.” Juruna morreu pobre, esquecido. Ele tinha uma doença no sangue: diabetes. Quando morreu, a tribo ficou sozinha.

Eu peço ao Grande Espírito: “Faz levantarem novos líderes! Eu estou muito cansado. Vê o quanto sofri pela causa do índio.” E ele tem muito amor por mim e eu também amo a ele.

Você ainda tem esperança de retornar para a sua tribo?
Eu voltaria para a minha tribo quando a revogação desse decreto (Decreto 7.056) fosse publicada no Diário Oficial. Quando fosse publicada pelo Diário Oficial a escolha de um bom presidente da FUNAI. Só assim nós poderíamos acreditar. Já estamos cansados da sociedade do branco, que só promete, promete e não faz nada para nós índios.

Como é o seu dia-a-dia, quando os outros índios não estão aqui em Brasília?
Eu vou à Água Mineral, onde tem o Parque Nacional, eu caço. Tem tatu, paca, capivara. Eu vou e caço. Depois coloco a carne para secar e salgar. Então esse alimento dura por 30 dias. É assim que me alimento. Há também as pessoas que gostam dos índios e me convidam para comer. Eu também tento conquistar as pessoas. Elas me falam: “Cuidado, você pode ser um segundo... (Korubo se emociona) ...o pataxó que morreu.”

Você conheceu Galdino Jesus dos Santos? (Índio Pataxó que foi queimado enquanto dormia num ponto de ônibus no dia 20 de abril de 1997, em Brasília.)
Conheci. Ele também me dizia: “Parente, a FUNAI está acabada. Eu estou vindo da Bahia. A FUNAI fechou.” Eu falei: “Eu durmo em cima da árvore. Você não quer vir dormir aqui?” Ele dizia: “Não é a primeira vez que eu durmo na banca. Já dormi 3 vezes. E aqui fica mais perto da FUNAI. Amanhã cedo tenho que resolver um problema lá.” Depois saiu a notícia que queimaram ele.

Muita gente me diz: “Korubo, tem cuidado. Não vai deixar se queimar. Dormindo aí nessa árvore...” Eu digo: “Eu não tenho só uma casa em cima da árvore, eu tenho várias casas. Quem quiser me matar não vai saber onde estou dormindo. Tenho aqui, tenho outra onde está o palácio de Lula, no Tribunal de Contas da União tem outra casa. Um dia durmo aqui, outro dia durmo lá.”

Alguém já fez algum mal pra você?
Aqui em Brasília tem o metro quadrado mais caro do Brasil, fica no Setor Noroeste (empreendimento do Governo do Distrito Federal que prevê a construção de um novo bairro voltado à população de alto poder econômico. Há disputas judiciais, uma vez que na área existe a Terra Indígena do Bananal, que pode vir a ser considerada Reserva Indígena, por decisão judicial). Eu fui ajudar meus parentes a defender a área indígena. Morei lá, briguei com a polícia que entrava, com os homens dos tratores. Nós éramos poucos índios.

Colocaram um pistoleiro pra me matar. Policia Militar. Sempre durmo em cima da árvore. De cima posso ver longe, vejo quem chega e quem vai. Me disseram: “Vocês estão lutando por essa terra no Setor Noroeste, é bom ter cuidado porque alguém pode te matar.”

Numa segunda-feira, fiquei sozinho no acampamento. Da árvore vi um carro da polícia do BOPE chegando. Fiquei quieto e camuflado nas folhas. Policiais encapuzados sacaram pistolas e começaram a olhar os rastros no chão. Abriram a porta da aldeia e olharam. Cachorros latiram. Eles colocaram fogo nas ocas. Depois saíram disparados.

Quando não tinha mais ninguém fui correndo pra FUNAI pedir auxílio. Continuei recebendo ameaças, até que fugi do Noroeste. Fui para Goiás. Fiquei escondido na mata. Traumatizado. Qualquer pessoa que me olhava eu já achava que era pistoleiro.

Isso em 2009. Em 2010, quando voltei, as pessoas disseram: “Korubo, pensamos que você estava morto.” Eu disse: “Os pistoleiros estavam atrás de mim. E eu não posso morrer agora porque ainda tenho muito o que lutar.”

E essa luta continua. Eu confio nos meus parentes, eles confiam em mim. E nossa maior proteção é o nosso grande Tupã. Estou numa idade avançada, cansado, quero ver os netos, os curumins que ficaram lá, como devem estar grandes. Quero voltar pra minha tribo com a notícia: “Parentes, finalmente conseguimos!”

* * *

Histórico do acampamento indígena

Desde janeiro de 2010 Korubo está na companhia de cerca de 300 índios de diversas etnias. Todos acampados em frente ao Congresso Nacional e ao Ministério da Justiça. Reivindicam principalmente a revogação do Decreto 7.056, que implica no fechamento da FUNAI em vários estados brasileiros.
Apesar das diversas manifestações, o grupo vinha sofrendo a indiferença do Estado. Até que no dia 5 de maio os índios foram recebidos na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal para a comemoração dos 100 anos da Política Indigenista. Recusaram-se a comemorar e exigiram a discussão sobre o Decreto 7.056.

No dia 19 de maio, ao tentar entrar na Câmara dos Deputados para acompanhar a votação da criação do Conselho Nacional de Política Indigenista, os índios foram impedidos pela Polícia Legislativa. No confronto, diversos índios foram agredidos. Muitos ficaram com marcas de choque elétrico. Korubo teve dois dentes quebrados e sofreu uma lesão no joelho.

Finalmente, no dia 1° de junho, antes do sol nascer, integrantes da Polícia Federal, da ROTAM e do BOPE chegaram ao acampamento fortemente armados. Queriam fazer cumprir uma decisão judicial que determinava aos índios uma distância mínima de 1 km do prédio do Ministério da Justiça. Depois de horas de tensa negociação, uma nova decisão judicial garantiu aos índios a permanência no acampamento, graças a um fato improvável: uma menina índia teve a sua primeira menstruação no local, e, de acordo com as tradições, ela teria que ficar isolada em sua tenda até o final do período, sem contato com qualquer pessoa.

Ainda na madrugada, enquanto os policiais do BOPE recebiam as orientações para a operação, em reunião sigilosa num trecho afastado do terreno, Korubo foi acordado pelos cochichos e pôde acompanhar todas as recomendações com muita atenção, sem ser percebido. Ele havia montado mais uma de suas casas, dessa vez no alto de uma árvore bem afastada do acampamento, mas escolhida pela polícia como base da operação. Encerrada a conversa, Korubo desceu da árvore, deu bom dia aos policiais atônitos e foi se juntar aos seus parentes, já acuados por integrantes da Polícia Federal.

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