play

A Trancoso que você nunca viu

por Kátia Lessa
Trip TV #176

Crescimento desordenado ameaça um dos pontos mais glamourosos da Bahia e mobiliza locais

Antes de ler esta matéria, faça um exercício. Se você já conhece Trancoso, tente montar uma foto imaginária do lugar. Se nunca esteve por lá, aproveite para dar uma busca na internet. As imagens, na tela ou na sua cabeça, serão as mesmas. Praias deslumbrantes, a linda igrejinha branca da praça central conhecida como Quadrado, as casas coloridas que hoje vendem peças de grifes caras, restaurantes badalados e links de sites de fofoca comentando as festas de réveillon que concentram o maior PIB do país. Essa é a Trancoso que você já conhece. Mas logo ali, nos bairros mais afastados, uma população que ficou quase uma década invisível começa a aparecer. Em bolsões de pobreza isolados, famílias nativas convivem com trabalhadores remanescentes do plantio de cacau – extinto pela praga vassoura-de-bruxa – e das antigas madeireiras, proibidas de funcionar na região. Todos eles migrantes atraídos por uma cidade que começava a despontar no mapa do turismo, mas que ainda não estava preparada para absorver tanta mão de obra desqualificada.

Basta sair da região do Quadrado e dar uma volta pelos bairros pouco turísticos – Mirante Rio Verde, Trancozinho, Invasão e Maria Viúva – para encontrar alguns desses personagens. Como José Rosa Mendes, 52 anos. Sentado com os amigos, ele relembra sua chegada a Trancoso. Em 1992, se viu desempregado na cidade baiana de Itabuna. Casado, pai de família, não pensou duas vezes antes de tentar a sorte no lugarejo que crescia tão rápido e que prometia se tornar uma fábrica de empregos. A mesma ideia teve dona Maria de Jesus, 49 anos, nascida em Porto Seguro, que até hoje aproveita o movimento da região para vender quitutes por conta própria. Como eles, vieram muitos outros.

Os primeiros conseguiram pequenos empregos na roça, no comércio ou na construção, e a grande maioria da segunda geração vive de bico até hoje. Os bairros habitados por essa nova camada são pobres, mas não chegam à condição de favela. Muitos dos moradores trabalham na construção civil e, por isso, conseguem o mínimo de estrutura para levantar suas casas de alvenaria, algumas delas com água encanada, embora as ruas ainda sejam de terra e o custo de vida, muito alto, o que diminui a porção do arroz e feijão no prato. “O quilo da carne é o mesmo preço pra mim e para o turista”, reclama José Rosa.

O inchaço populacional e a falta de investimento em educação e capacitação profissional levaram os habitantes das regiões mais pobres ao subemprego. Morador da periferia da cidade e nativo da região, Nilton Gonçalves, 40 anos, resume a situação atual da cidade: “Trancoso hoje está dividida. Tem a Trancoso dos ricos, que sai nas revistas, e a nossa Trancoso, que a senhora está vendo aí. Não vou dizer que não existe trabalho pra nós, eu mesmo sempre tenho trabalho de pedreiro, mas nos outros trabalhos o patrão pede pra falar línguas, pra saber computação, ter estudo. Pra nós fica o serviço que sobrar”, desabafa.

Com o desemprego, já começam a aparecer outros problemas sociais como a violência e o tráfico de drogas. Segundo dados do Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros 2008, Porto Seguro, cidade que abrange o distrito de Trancoso, ocupa a 16ª posição no ranking nacional. Mas o prefeito Gilberto Pereira Abade ressalta que o distrito é o menos violento do município. “A violência ainda não chegou a Trancoso de forma definitiva, porque ainda não existem favelas lá. Apesar de os terrenos terem sido invadidos, as pessoas ainda vivem com dignidade, mas necessitam de trabalhos sociais como saneamento básico e creches. Aqui o crack é uma realidade por ser uma droga muito barata. Sem emprego, jovens moradores se envolvem no crime”, conta o prefeito. Segundo o delegado da polícia civil, Renato Ribeiro, o crack é a droga mais consumida em Porto Seguro, mais até que a cocaína e a maconha.

"Trancoso hoje está dividida. Tem a Trancoso dos ricos, que sai nas revistas, e a nossa Trancoso, que a senhora está vendo aí"

Com a recente troca de administração, as autoridades locais não têm números para comprovar o crescimento do tráfico e da violência em Trancoso nem possuem dados à mão dos indicadores sociais, mas a população confirma o problema. Waldack Bonfim Ermenegildo, de 32 anos, filho do falecido Zé Barbudo, dono do bar que foi o point dos tempos áureos do vilarejo, conta que a cidade não estava preparada para esse boom, e hoje os moradores têm que lidar com o problema da droga, principalmente o crack, e dos pequenos furtos. “Fizemos até uma passeata para pedir segurança. Os ricos aqui nos ajudam muito, mas, mesmo sem ser seu papel, poderiam ajudar ainda mais, porque uma palavra deles têm peso maior até do que um pedido do prefeito.”

SOS paraíso

Por essa Trancoso oculta, não andam os endinheirados que apenas veraneiam naquela praia e voltam para suas casas em São Paulo ou Rio de Janeiro depois do Carnaval. Mas circulam os novos ricos da região, chamados de “hippies”, como Lia Udler, 51 anos. Ela faz parte da turma de estudantes bem-nascidos, bem instruídos e amantes da natureza que deixou as grandes cidades para fincar os pés na areia. Quando chegou a Trancoso, em 1976, a cidade não passava de um pequeno povoado, com pouco mais de 20 famílias, todas moradoras do famoso Quadrado. Aos 19 anos, ela deixou os pais de cabelo em pé por não voltar das férias no Nordeste. Casou, teve filhos, netos, se integrou com a comunidade local, enriqueceu com a valorização muito rápida dos terrenos e viu o lugar crescer tão depressa que hoje fez uma nova escolha, a de prestar socorro.

Por meio de pessoas como Lia, a cidade começa a se mobilizar para evitar o colapso. Presidente da SAT (Sociedade Amigos de Trancoso), ela tomou as dores da cidade. “Sinto que essa é uma espécie de missão que me cabe. Quero aproveitar o contato que tenho tanto com a Trancoso dos bacanas quanto com a nativa para ajudar esse lugar a evoluir de forma sustentável. A cidade tem que crescer, mas não está interessada no turista que chega procurando apenas o glamour e não se importa em deixar seu lixo chic na areia”, diz. “Imagina que bacana se eu conseguir implantar pequenas fabriquetas de sabonete, por exemplo. As pousadas daqui não teriam que comprar de outras cidades, e muitos outros empregos seriam gerados”, teoriza.

Um dos grandes desafios para melhorar a situação de Trancoso é a qualificação dos empregados. Nas casas onde veraneiam ricos empresários brasileiros e estrangeiros, muitas vezes os empregados passam por treinamentos, bancados pelos próprios patrões, para trabalho como copeiras, arrumadeiras ou cozinheiras sofisticadas. O mesmo acontece nas pousadas. “Aqui no Capim Santo, todos os funcionários são locais, mas quem cuida do atendimento em inglês sou eu”, revela Fernando Leite, 52 anos, pai da chef Morena Leite, mais um dos “hippies” chegados nos anos 70 que até hoje não arredam o pé da cidade.

A paixão pela praia baiana está no sangue. Apesar morar em São Paulo, a chef que comanda a filial paulistana do restaurante não esquece a cidade onde cresceu e planeja implantar um projeto social para ajudar os cidadãos locais: “São muitas as carências do povo. Hoje penso em ampliar o projeto para ensinar massagem, línguas, computação, para que eles cresçam junto com a cidade e evitemos o aumento da massa miserável”.

Hippie chic

Mesmo tendo colaborado para elevar Trancoso ao status de lugarejo glamoroso e recanto milionário do país, a maior parte dos endinheirados que realmente frequentam esse pedaço do litoral baiano é ativa na comunidade local. “Já doaram creche, delegacia, escola”, conta um funcionário de um dos restaurantes estrangeiros do Quadrado, que não quis se identificar. Silvana Vieira da Conceição, 51 anos, cuja pequena casa no Quadrado hoje vale em torno de R$ 1 milhão, mas que ela prefere usar para trabalhar em seu restaurante, resume a questão: “As primeiras pessoas que ficaram ricas com Trancoso foram justamente os ‘hippies’. Porque eles tinham estudo e souberam o que fazer quando os turistas chegaram querendo comprar tudo. Casas, terrenos, fazendas, pousadas. Sempre tivemos uma vida muito boa ao lado deles. Existia uma troca, na qual todo mundo aprendeu demais e evoluiu. Eu mesma não vendi minha casa por ajuda deles. Eles têm mais visão de negócio do que nós. O mais importante é que a maioria dos terrenos ainda é dessa geração que cresceu entre nós e que preserva a natureza”, completa.

 

Um desses “hippies” que se deram bem foi Carlos Eduardo Régis Bittencourt, o Calé, hoje um grande empresário da região, envolvido com empreendimentos de altíssimo luxo, como o condomínio Terra Vista – que inclui um campo de golfe de 10 km no qual garotos da região aprendem a jogar sem pagar nada. Calé chegou a Trancoso em 1975, foi casado com Lia, e por lá estão até hoje, mesmo que, vira e mexe, use seu avião particular para ir até São Paulo. Além de ter tino para os negócios, Calé deu muita sorte. Em um povoado que vivia de agricultura de subsistência, terrenos próximos à praia não tinham serventia, por não serem férteis. Mas uma vista deslumbrante para o mar, no alto das falésias, sempre faz brilhar os olhos de um paulistano nascido com horizonte de concreto. “Essas terras onde agora estão o Club Med e os condomínios mais bacanas não valiam absolutamente nada, e hoje são muito procuradas. Eu poderia ter feito muitos e muitos lotes de 300 m2, mas optei por preservar o máximo que pude de vegetação natural e evitar um povoamento ainda mais desenfreado”, justifica. “Trancoso tem um espírito, uma aura inexplicável, que, se for passada adiante, para os filhos dos ricos ou dos pobres, pode ajudar a manter esse paraíso”, conclui Lia, a ex-mulher de Calé, minutos antes de uma reunião com a prefeitura local. Os turistas também agradecem.

"A cidade tem que crescer, mas não está interessada no turista que chega procurando apenas o glamour e não se importa em deixar seu lixo chic na areia"
fechar