Por que sempre acreditar em mudanças?

Buscamos essa resposta durante a cerimônia de entrega do prêmio Trip Transformadores 2019, no Auditório Ibirapuera, em São Paulo

por Redação em

No último dia 7 de novembro, o Trip Transformadores ocupou mais uma vez o Auditório Ibirapuera, em São Paulo, que se encheu de força para a celebração da 13ª edição do prêmio. Em um ano em que se discutiu demais e se conversou muito pouco de modo construtivo, conseguimos mostrar mais uma vez que a verdadeira revolução nasce diariamente dos gestos das pessoas que se movimentam para fazer do Brasil um lugar melhor para todo mundo.

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Inspirados por esse sentimento, nos momentos que antecederam a cerimônia, conversamos com alguns dos homenageados — a escritora Conceição Evaristo; o neurocientista Eduardo Schenberg; o ex-atleta e comentarista Walter Casagrande; a criadora do instituto Beaba Simone Mozzilli; o ativista que luta pelas comunidades tradicionais brasileiras Altamiran Ribeiro; a professora e militante Yvonne Bezerra de Mello; e o juiz Iberê Dias — e também com o rapper Thaíde, que entregou um dos prêmios da noite, e com a cantora Josyara, que subiu no palco para cantar "Rota de Colisão".

No papo, sugerimos uma reflexão sobre como seguir acreditando em mudanças mesmo quando o mundo parece estar andando para trás. Abaixo, você confere o que eles nos disseram.

Conceição Evaristo, escritora negra que foi homenageada no Trip Transformadores pelo trabalho que faz para estimular e abrir caminho para novos escritores - Crédito: Mariana Pekin

Como continuar acreditando em mudanças quanto tudo parece estar andando para trás? 

Conceição Evaristo, escritora. Quando tudo parece estar andando para trás, não podemos perder o incentivo. Não devemos perder o que já foi feito, por exemplo, na saga das mulheres negras. Eu me recordo da luta de ontem de outras mulheres negras que me antecederam e que, muitas vezes em situações subalternizadas, prepararam o futuro para suas filhas. Buscar a perseverança de quem já esteve é uma maneira de a gente acreditar que é possível, acreditar que a gente tem que continuar lutando. 

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Yvonne Bezerra de Mello. Acreditar é algo que depende muito do que você faz e aí a gente consegue dar um passo à frente. Costumo ser muito positiva. 

Thaíde. Mesmo com as coisas indo para trás, precisamos caminhar para frente. É vencer pelo cansaço. 

Eduardo Schenberg, neurocientista e um dos premiados no Trip Transformadores 2019 pelo trabalho que desenvolve com o uso de substâncias psicodélicas associado ao tratamento de transtornos mentais - Crédito: Mariana Pekin

Eduardo Schenberg. A vida é assim, tem os seus opostos, aquela coisa pendular. Cada hora vai para um lado. Se tudo estiver indo bem, aí é que não precisaria de transformação, né? A gente quer transformar exatamente porque as coisas não estão indo tão bem quanto a gente acredita que poderia.

Simone Mozzilli. Como eu passei por uma situação em que minha vida parecia andar para trás, tentei ressignificar isso. Às vezes, você tem que dar um ou dois passos para trás para pegar impulso e ir mais forte para frente. É ter pequenos obstáculos e vencer um a cada dia. Aí, quando você vê, deu um passo muito grande.

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Josyara. A gente deve acreditar quando está fazendo aquilo que ama, com as pessoas que a gente sente que fortalecem a luta para as coisas se movimentarem. É se juntar.

Iberê Dias. Acreditar que as coisas vão ficar melhores é a única solução. A gente parece que está no fundo do poço e cavando ainda mais, no Brasil, em especial. Em um evento como esse, a gente vê como tem pessoas fazendo coisa boa por aí. A gente tem que acreditar, apesar dessa fase turbulenta e lamentável da história brasileira.

Iberê Dias, juiz e um dos homenageados do Trip Transformadores pelo projeto Trampo Justo, que também rendeu homenagem ao rapper Dexter - Crédito: Mariana Pekin

Altamiran Ribeiro. Tem uma música de um cantor piauiense que diz: “Há sempre algum motivo para sonhar”. Eu acho que, apesar de tudo, temos que estar sempre sonhando e acreditando que vai dar certo, sem nunca achar que já cansou ou se entregar. Na atual situação, a nossa esperança tem que estar viva. Outra frase muito usada pelo pessoal da Comissão Pastoral da Terra Nacional é: “Faz escuro, mas eu canto”. E é nesse cantar que você consegue ver luzes, ver caminhos para romper com tudo que está aí. Quando você vai em uma comunidade que está em situação de conflito – indígena, ribeirinha ou outra qualquer–, você vê as pessoas cantando suas músicas, chamando suas divindades, mesmo que estejam sofrendo. E isso te mostra que, mesmo na dor, eles estão sempre esperançosos de que amanhã pode ser diferente. A gente tem que buscar esses motivos nessas pessoas que sofrem, porque eles acreditam na melhora.

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Walter Casagrande. É agir, ter atitude. Se ficar sentado olhando tudo andar para trás, não vai existir transformação alguma. Precisamos de pessoas que coloquem a cara para bater, que não se preocupem só consigo mesmas, mas com todo mundo. As mudanças acontecem quando você se preocupa com os outros, qualquer tipo de transformação é assim.

Casagrande, ídolo do esporte, foi homenageado por sua trajetória pessoal no combate ao vício e a forma como usa a própria história para ajudar outras pessoas a lidar com o mesmo problema - Crédito: Mariana Pekin

Se pudesse escolher apenas uma coisa para transformar no mundo, o que seria?

Conceição. Eu tentaria acabar com a prepotência das pessoas. As pessoas que exercem um certo poder dentro de um micro ou macro espaço, a prepotência dessas pessoas na maneira delas se conduzirem, a impressão que elas têm de serem donas do mundo. Mais que essa prepotência, o orgulho que as pessoas têm quando estão no lugar do “eu mando” e acham que as que estão ali numa situação abaixo delas são objetos. Essa conduta de fazer do seu igual, do seu semelhante, um objeto, uma coisa, eu acabaria com isso, com a prepotência de quem tem o poder ou de quem acha que tem o poder. Para mim, a ferramenta para mudar isso são as pessoas que estão subjugadas aos poucos irem tomando consciência de seus valores, consciência da dignidade humana. Porque, quando você toma consciência da sua dignidade, você tem mais força para lutar contra a prepotência do outro. 

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Yvonne. 
Eu acabaria com a escola tradicional no mundo todo e faria com que as crianças tivessem acesso a coisas novas, a uma educação mais dinâmica. Acho que, hoje em dia, é tudo muito atrasado. 

A cantora Josyara se apresentou durante a cerimônia de premiação do Trip Transformadores 2019 - Crédito: Mariana Pekin

Josyara. Faria existir mais respeito. A gente está vivendo um momento de muita intolerância, sendo reprimidos e as cabeças estão retrocedendo. Tem que haver um respeito pelas diferenças.

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Casagrande. Eu mudaria a ajuda a dependentes químicos, ajudaria essas pessoas que estão na rua, porque isso me machuca muito. O máximo que eu posso fazer é o que eu faço: estou procurando a ajuda de políticos, preciso de uma ação oficial para tentar fazer essa transformação. Tem muita coisa que precisa ser transformada, mas eu vou na minha dor.

Iberê Dias. Seria a igualdade entre as pessoas, em todos os aspectos. Aprender a encarar as pessoas de forma efetivamente igualitária, sem casta. Essa é a mudança que a gente mais precisa no país. Vivemos ainda num país estratificado.

Simone. Acredito muito no amor e na fé. Pode ser fé em uma coisa maior, em você, no amor. Acho que é ter fé no amor.

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Eduardo. A consciência humana

Altamiran. Faria existir mais respeito ao modo de vida das pessoas.  

Thaíde. A ignorância, porque é isso que faz as pessoas guerrearem, serem racistas, maltratarem animais, derramar óleo em praias, matar índios...

A cantora Josyara se apresentou durante a cerimônia do Trip Transformadores 2019, quando entregou o prêmio ao neurocientista Eduardo Schenberg - Crédito: Mariana Pekin

Quem você viu transformar o mundo em 2019? 

Conceição. A pessoa que eu vi transformar o mundo este ano, que, aliás, vem transformando o mundo desde sempre, é a líder afro-americana Angela Davis. Cada vez que aquela mulher fala, ela até diz: “Quando uma mulher negra se movimenta, ela movimenta o mundo”. Ela foi a minha guru na juventude. Nós temos a mesma faixa de idade e eu fico muito feliz de ainda hoje poder conviver com ela e perceber que é uma mulher que vem ao longo do tempo mantendo uma fidelidade a sua militância, à palavra, à luta. Uma pessoa que está transformando o mundo é a Angela Davis. 

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Simone. Quem transformou o mundo e, principalmente, o meu mundo este ano, foi a Trip. Às vezes, no dia a dia, a gente só enxerga as dificuldades e fica brigando. Vocês conseguiram mostrar o quanto a gente [da ONG Beaba] já fez. É difícil parar para apreciar o que a gente faz, porque a gente está sempre lutando.

Simone Mozzilli é a criadora da ONG Beaba, que ajuda crianças em tratamento contra o câncer a terem uma melhor qualidade de vida durante esse difícil momento - Crédito: Mariana Pekin

Casagrande. Foi o movimento dos estudantes, no Brasil, quando o governo diminuiu a verba das universidades. Ali, eu acreditei. Estava faltando essa movimentação estudantil que há muitos anos não acontece. Eles foram para a rua e é isso que precisa ser feito. Não só os estudantes, mas todo mundo. Nós temos que evitar o caos, está na nossa mão. Não adianta ficar assistindo televisão e achar que tudo está horrível. A mudança acontece quando muita gente se mexe.

Josyara. As mulheres estão pensando mais no coletivo, em se juntar. Estão se estudando, entendendo o mundo e com a maior vontade de fazer a coisa acontecer.

Iberê. Tem uma pessoa fazendo um trabalho no Capão Redondo usando o esporte como ferramenta de inclusão social, que é a Neide. Ela tem um projeto que chama Vida Corrida, voltado para crianças, que usa a corrida para promover a igualdade, a inclusão e a adoção de práticas saudáveis.

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Yvonne. Quem transformou o mundo, na parte ambiental, foi aquela menina, a Greta Thunberg, porque, apesar de estar todo mundo contra ela, ela conseguiu levantar os estudantes no mundo todo. Isso é fenomenal.

Yvonne Bezerra de Mello criou uma pedagogia própria no projeto Uerê, que nasceu em 1980 quando ela criou uma escola sem portas nem janelas para educar moradores de rua. Ela foi homenageada no Trip Transformadores 2019 - Crédito: Mariana Pekin

Altamiran. Eu vejo essa pessoa como um beija-flor da floresta, que é o Papa Francisco. Apenas com palavras, ele consegue mexer com muita gente. Digo que é o beija-flor porque ele joga uma gota de água no incêndio que é esse assunto, mas, mesmo assim, consegue fazer diferença e mobilizar pessoas.

Eduardo. Meu voto vai para o movimento indígena, porque acho que é a transformação mais urgente que precisamos ver. O movimento indígena hoje representa basicamente a sustentabilidade planetária. Se não for mais possível sobreviver como indígena, através da pesca, da pequena caça e da pequena horta, vai ser possível sobreviver de que forma?

Créditos

Imagem principal: Mariana Pekin

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