O que vem da terra
A agricultura familiar gera empregos, movimenta a economia e contribui para um futuro mais sustentável. Saiba por que fortalecer esta atividade que já é meta estabelecida pela ONU.
Em 2050, seremos quase 10 bilhões de pessoas no mundo (passando das atuais 7,7 bilhões), de acordo com o relatório Perspectivas Mundiais de População 2019, da ONU. A projeção traz uma questão urgente: como alimentar tanta gente, de forma saudável, sem aumentar ainda mais a degradação ambiental? A resposta pode estar no trabalho de pequenos produtores rurais, de acordo com a organização, que no ano passado lançou a Década das Nações Unidas para Agricultura Familiar (2019-2028), com objetivo de fortalecer a atividade em diversos países.
A definição de agricultura familiar, segundo Rafael Zavala, representante da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura no Brasil (FAO), varia de acordo com a realidade de cada país. Mas, de modo geral, é um tipo de produção que envolve vários integrantes da mesma família, que moram e trabalham na propriedade rural, têm a atividade agrícola como a principal fonte de renda e se organizam em associações para comercializar seus produtos.
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No Brasil, os agricultores familiares trabalham em propriedades de até 100 hectares e produzem boa parte dos alimentos que chegam à nossa mesa. São quase 87% da produção de mandioca, 70% do feijão, 58% do leite, 50% de aves, 59% de suínos, 46% do milho, 38% do café e 34% do arroz, de acordo com dados do Sebrae, de 2017. O restante vem da agricultura patronal, que é voltada para a exportação.
“O grande desafio é produzir alimentos saudáveis a partir de sistemas sustentáveis, ou seja, ter melhor aproveitamento da água, terra e florestas, gerando menos desperdícios. Outro desafio é fazer melhor uso do controle biológico de pragas e de técnicas para preservar os recursos naturais”, explica Rafael. Algumas metas da organização para a próxima década incluem promover sistemas de produção resistentes às mudanças climáticas e fortalecer o cooperativismo entre os agricultores familiares.
A atividade também promove a inclusão socioeconômica de comunidades rurais e ajuda a movimentar a economia, como destaca André Cardoso, consultor de agronegócio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae): “A agricultura familiar abastece as casas, as escolas e produz a maior parte dos alimentos orgânicos. O que é produzido é consumido dentro do país, em vez de ser exportado”, argumenta.
De volta à terra
Lourival Líbano, 52 anos, cresceu em meio às plantações de mandioca, junto com os pais e os oito irmãos, em Salitre, município de cerca de 15 mil habitantes, no extremo sul do Ceará. Registrada em 2018 como a capital da mandioca do estado, a cidade se desenvolveu tendo como base a agricultura familiar, com o cultivo da raiz vendida para a fabricação de farinha.
Apesar da familiaridade com a terra, Lourival foi tentar a vida em São Paulo, aos 17. “Eu queria uma coisa melhor. Naquela época, a farinha não tinha valor e a produção era toda manual, na enxada”, conta. Durante 30 anos, trabalhou como entregador na capital paulista, até ser demitido junto com os funcionários mais antigos da empresa. “Eu tenho só o ensino médio, tentei arrumar outro emprego e não consegui”, relembra.
No caminho inverso ao que fez na adolescência, voltou a Salitre para trabalhar no plantio de mandioca, há cinco anos. Muita coisa mudou, desde então. Lourival foi o primeiro agricultor familiar contratado para produzir o ingrediente principal da cerveja Legítima, lançada pela AmBev em junho de 2019. “A gente plantava 15 tarefas [termo usado para se referir a uma área de 3 hectares] e no ano passado chegamos a mais de 30”, conta, orgulhoso. “Hoje somos em 16, entre irmãos, sobrinhos e algumas pessoas que conseguimos contratar para atender a AmBev. Vendemos a mandioca a um preço melhor que o da farinha e não usamos nada de agrotóxicos.”
Comercializada exclusivamente no Ceará, a Legítima é uma cerveja do tipo American Lager feita a partir da mandioca produzida hoje por 150 agricultores familiares de Salitre, número que a AmBev pretende ampliar para 600 até o final de 2021. “O comércio melhorou, a economia passou a girar em torno disso. Direta ou indiretamente, a cidade inteira está envolvida com a produção da cerveja”, relata Lourival, que não hesita em comemorar a volta à terra natal: “Minha vida hoje está melhor do que se eu estivesse em São Paulo. Eu sentia falta da minha cidade, queria trabalhar com a terra, cresci nisso”.