Com mais de vinte mil partos realizados, a ginecologista fala sobre a sexualidade dos adolescentes, pornografia, pobreza menstrual e lembra o atendimento médico durante a ditadura
Com mais de vinte mil partos realizados e passados quarenta anos de formada, a Dra. Albertina Duarte Takiuti há muito tempo deixou uma infância pobre para se tornar uma das ginecologistas mais reconhecidas do país. Quando criança, essa portuguesa filha de um pai pedreiro e uma mãe analfabeta veio com a família ao Brasil com a esperança de abandonar o governo autoritário de António Salazar. A verdade é que aqui ela enfrentou uma nova ditadura, e em seu consultório passou a atender mulheres torturadas pelo regime militar: costurou mamilos arrancados e fez cirurgias sem poder contar sequer com o banco de sangue.
A morte e a vida fizeram parte de sua história desde muito cedo: ainda em Portugal, ajudava a tia parteira e corria para atender qualquer pessoa que precisasse de um curativo. Com sete anos prometeu ao irmão mais novo que acabara de levar um coice que iria cuidar dele quando se tornasse médica. Ele não resistiu aos ferimentos e morreu, mas ela seguiu com o combinado. Estudou, ganhou uma bolsa em uma escola particular de São Paulo e provou que a mãe, que pregava "pobre não faz medicina”, estava errada.
Mais tarde, como coordenadora do Programa de Saúde da Adolescente da Secretaria da Saúde de São Paulo, foi responsável por reduzir em 55% a gravidez de meninas com idade entre 10 e 19 anos. Além disso, passou a chefiar o Ambulatório de Ginecologia da Adolescência do Hospital das Clínicas, e também atende em consultório particular – seus dias geralmente terminam às duas da madrugada, isso quando não há alguma paciente em trabalho de parto.
Nada, no entanto, a faz perder o bom humor, nem mesmo o recente veto do presidente Jair Bolsonaro à distribuição de absorventes a mulheres em situação de vulnerabilidade, projeto que ela sempre defendeu. Em entrevista para o Trip FM, sempre sorridente, Albertina ainda fala sobre pornografia e a sexualidade dos jovens. Ouça o programa no Spotify, no play nesta reportagem ou leia um trecho da entrevista a seguir.
Trip. Eu queria que você contasse das dificuldades e também das belezas de vir de uma família humilde e de um país como Portugal. Como a senhora fez no início?
Dra. Albertina Duarte. Eu sou uma imigrante e tenho muito orgulho de ter sido pobre. Minha mãe não sabia ler e hoje ela tem quatro filhos que escreveram livros. Em Portugal eu já sabia que seria médica. Acompanhava a minha tia que era parteira, não participava, porque era criança, mas carregava a água quente. E gostava muito de fazer curativos. Ela ia junto e eu fazia os curativos. Quando chego ao Brasil, o meu irmão tem um acidente com um cavalo, é operado muito tarde e morre. Enquanto ele esperava socorro eu dizia que seria médica e trataria ele. A minha relação com a vida e a morte sempre foi muito forte. Minha mãe dizia que pobre não fazia medicina, mas eu respondia que era inteligente. Ganhei uma bolsa e fui estudar em um dos colégios mais ricos da minha época.
Conforme o ângulo que nós olhamos, o universo feminino melhorou muito: o movimento feminista ganhou espaço. Mas, por outro lado, uma mulher ser forçada a pegar jornal velho para usar como absorvente deixa a impressão que andamos para trás. Você, que todos os dias sente o pulso das mulheres, acha que estamos andando para trás ou para frente? Eu tenho medo de que estejamos andando para trás. Eu tive muito orgulho de ajudar a desenhar a saúde da mulher dentro do SUS, entendendo que a mulher deve ter saúde em todas as fases da vida. Eu venho lutando a muito tempo pela dignidade íntima. Uma mulher não pode sofrer bullying porque está escorrendo sangue pela perna ou porque molhou as suas roupas. Eu vejo dois mundos sempre, pois atendo no consultório e na rede pública. Já tirei pão, papelão e pedaço de cobertor da vagina das mulheres. Um absorvente não custa nada comparado ao que você pode dar de autoestima. Isso além de saber que uma a cada quatro meninas falta na escola porque está menstruada. É um problema de saúde pública.
A gente sabe que mesmo as camadas menos favorecidas têm acesso a algum tipo de informação: são mais smartphones do que pessoas hoje no Brasil. Dá para falar ainda que gravidez entre jovens é falta de conhecimento? Eu adoro responder essa pergunta. Nós temos o nascimento de 52 crianças filhas de mães adolescentes por hora. A cada 21 minutos uma criança de 14 anos é mãe. Nos anos de 1990 nós fizemos uma pesquisa que revelou que 90% dos adolescentes conheciam métodos anticoncepcionais, mas 70% não usavam na primeira relação. Qual foi a discussão: a menina tinha medo de não agradar e o menino medo de falhar. O problema não é informação, é negociação. Uma menina pode ter todas as informações, mas na hora de dizer que ela não terá relação sem preservativo, ela precisa ter autoestima e autoconfiança para gerar o autocuidado. Para o menino, de que adiante saber usar o preservativo se ele tem medo de falhar, de usar o preservativo e não ter o melhor desempenho? Isso em todas as classes sociais. A mulher tem uma questão comum ao gênero que é péssima: o medo de não agradar o parceiro. Olha que dor. Uma menina de 14 anos que se julga feia não vai dizer que não transa sem camisinha. A gente precisa sair desse lugar, não é informação. É habilidade de negociar com o parceiro e colocar limite.
As mulheres foram tão reprimidas durante tanto tempo que isso pode ter gerado um movimento pendular. Está acontecendo mesmo isso, esse exagero de liberdade? Começamos a receber muitas meninas perguntando sobre teste de DNA. Isso assustou um pouco. Os adolescentes me contam muita coisa. Uma das situações é a tábua do sexo, no baile funk: as meninas ficam de costas, sem calcinha, e os meninos vão passando. É algo que extrapola para a classe média também – jovens experimentando com vários parceiros em uma noite. Já não é mais só beijar. Eles me contam e ficam me olhando, esperando aprovação. Eu pergunto assim: “Como você se sentiu, foi bom?". A resposta geralmente é negativa. Se os pais e as mães soubessem das coisas que eu escuto... Há dias em que preciso fazer terapia. Com toda a minha idade, tem coisas que eu não acredito que estou ouvindo. A minha fala é: "Todo o afeto, toda a relação sexual precisa colocar para cima, deixar mais forte. Se você precisa pagar pedágio, aceitar migalhas de afeto, aí não vale a pena". Quando eu falo migalha, tem gente que começa a chorar.
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