A jornada rumo a esse lugar que se chama “alguém melhor” é um movimento que exige esforço constante, desconstruções, reparações
Era o primeiro fim de semana que passávamos com o status de namoradas e eu não poderia imaginar que um dos maiores testes a que um relacionamento pode ser submetido iria, em tão pouco tempo, exigir que cada uma de nós mostrasse do que era feita. Mas foi o que aconteceu.
Depois de um sábado e de um domingo de muito sexo, queijos, vinhos e amor, na segunda-feira bem cedo você deveria voltar para o Rio de Janeiro, onde mora. Levantei para te levar até o táxi porque o centro de São Paulo, onde moro, não é para novatos, então achei adequado e elegante descer com você. Era seu relacionamento inaugural com uma mulher e eu precisava mostrar como uma sapatão pode ser fofa, gentil e atenciosa. Não passava das 7 da manhã quando abri a porta que nos levaria ao elevador e vi uma cena de horror: uma barata de proporções dinossáuricas descansava na parede do hall de entrada. Fiz a única coisa que uma pessoa normal poderia ter feito diante da situação: empurrei você para fora do apartamento, fechei a porta e comecei a gritar: “mataaaaaa!”, “mataaaaaa!”.
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Era, com efeito, um teste sem precedentes. Por isso achei que seria bom tomar tenência e foi o que fiz. Respirei fundo, parei de gritar, abri os olhos e decidi espiar sua reação pelo olho mágico. Foi quando vi você, com uma expressão que misturava tédio, sono e incredulidade, tirando o sapato e, com muita elegância e firmeza, dando uma sapatada certeira na barata, que caiu desfalecida. Matar uma barata com um golpe apenas, antes das 7 da manhã, não é para qualquer um. Em seguida, ainda pendurada no olho mágico e ofegante, vi e ouvi você murmurar, olhando para a porta com uma expressão que agora misturava incredulidade, tédio e também um pouco de raiva: “Será que você pode abrir a porta para eu pegar a minha mala?”. Abri a porta sabendo que, se dependesse de mim, ficaríamos juntas para sempre.
A verdade é que sou uma sapatão cheia de frescuras. Além de rea-gir escandalosamente quando suspeito que existe uma barata por perto (vim equipada com a capacidade de prever baratas), não como carne com nervo ou gordura, não como carne sangrando, não como, aliás, carne que não seja filé-mignon, maminha, fraldinha ou cupim. Do frango, apenas peito e já limpo. Também não gosto que bebam no meu copo ou cutuquem meu prato. Dizem que sou mimada e insuportavelmente dengosa. Fui, de fato, bastante estragada pelos privilégios que tive e ainda tenho.
Nasci e cresci dentro de uma família tradicional. Católica, conservadora, direitista, totalmente branca, bastante europeia e ligeiramente rica. Estudei nas melhores escolas, tive acesso a clubes privados, onde pude praticar esportes e conhecer muitas pessoas como eu. Viajei para a Europa antes dos 18, aprendi outras línguas, li muitos livros. Não precisei fazer as camas onde dormi, nem lavar a louça que sujei ou guardar as roupas que usei. Havia quem fizesse isso por mim. Eram, quase sempre, corpos negros a me servir.
Uma criança que se forma nessas circunstâncias naturaliza preconceitos e tem sua configuração-padrão programada para acreditar ser melhor do que outros: pobres, excluídos, periféricos. A vida, aliás, vai dando a você a certeza de ser isso mesmo. Os melhores empregos são seus, os salários mais altos, também, as casas mais glamurosas, idem, e sempre localizadas em bairros cheios de conveniências e oportunidades culturais.
Mundo real
É preciso um bocado de atenção e de disciplina para perceber que o mundo real não é bem aquele em que tentaram fazer você acreditar. O mundo real é injusto, cruel, desigual e a sua volta existem milhões de pessoas que, ao contrário de você, não tiveram oportunidades. Nessa hora, é fundamental que nos perguntemos como teria sido a vida delas se tivessem tido as chances que tivemos.
Claro que é mais fácil acreditar que eu me dei bem na vida porque sou mesmo talentosa. Que ganhei dinheiro porque ralei. Que sou culta porque me esforcei. Não é conveniente acreditar que só ganhei dinheiro e status porque tive oportunidades e privilégios, ou uma herança, ou consegui meu primeiro emprego porque meu pai era amigo do dono da empresa. Ou, quem sabe, era até o dono da empresa. As pessoas mais esforçadas que eu conheço são pobres e se esforço fosse garantia de sucesso e riqueza, elas seriam bem mais ricas do que eu.
Mas é preciso muita atenção e disciplina para se desfazer da configuração-padrão e pensar por conta própria. Trata-se, como sugeriu o escritor David Foster Wallace, da verdadeira liberdade: a liberdade de enxergar o outro.
Todos somos feitos de inúmeros preconceitos. Somos falíveis porque somos humanos e nossa beleza é inseparável de nossas fragilidades. Nada disso é novo ou surpreende. O que surpreende é ser criado com tanta escolarização e ainda assim não reconhecer o preconceito estrutural introjetado em cada um de nós, e então fazer o que for preciso para se livrar dele.
O racismo, o machismo e a homofobia são estruturas de poder que vão além de desvios de caráter individuais. Dar os ombros e dizer coisas como “mas eu não sou racista” é deixar de enxergar o racismo como estrutura de poder, deixar de perceber que, apesar de querermos nos considerar pessoas boas, estamos impregnados desses preconceitos porque eles foram introjetados em todos nós quando éramos crianças.
Estruturas de poder fazem uso de todos nós para que, doutrinados e automatizados, possamos perpetuar a hegemonia de quem sempre nos oprimiu. Com elas seguimos alimentando, ainda que inconscientemente, os valores de uma sociedade patriarcal que celebra tudo o que é masculino, branco e heteronormativo e tenta marginalizar e deslegitimar qualquer coisa que não seja. A jornada rumo a esse lugar que se chama “alguém melhor” é longa e está longe de ser um evento; é um movimento que exige esforço constante, desconstruções, reparações. Que exige coragem para sentir vergonha da pessoa que um dia você foi e, depois, uma certa saudade daquela que você ainda não é.
Créditos
Imagem principal: Ilustração: Catarina Bessell