Conflito cultural entre dois países é tema de filme alemão gravado em Ouro Preto. Marília Gabriela fala com a Tpm sobre o trabalho
Em certa linha do poema “Confidência do Itabirano”, o escritor Carlos Drummond de Andrade escreve: "esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação". Parecia prever o que se passaria numa cidade perto de Itabirito - não confunda com Itabira. Em Ouro Preto, o brasileiro Aldri da Anunciação e o alemão Edgar Selge protagonizam o filme Uma canção é para isso, em que tentam se comunicar em meio a idiomas, países e histórias diferentes.
A obra, uma coprodução Brasil e Alemanha, é dirigida pelo alemão Ansgar Ahlers - em contato com o país desde 2004. “É um filme sobre começar algo”, diz ele. A película acompanha as desventuras de Marten (Selge), um músico que vem ao Brasil em busca de uma partitura e, roubado, se vê as voltas com o mineiro Cândido (Anunciação) e uma orquestra infantil na cidade de Aleijadinho. “Ele redescobre a música e, junto de Cândido, cria algo novo”, afirma Ansgar, também roteirista do filme.
Em cena, Edgar Selge desdobra a língua em alemão, inglês e português, mas recorre a sua língua mátria para falar do que lhe dá tesão. “Wechselwirkung: tudo muda quando você se comunica, a todo o momento”, diz. Ele também enxerga isso na música enquanto elemento e personagem do filme. Ainda mais, coloca-se fora de qualquer precisão teutônica no seu trabalho. “Não acredito em métodos, só vejo pessoas e personagens”.
Embora seja uma figura reconhecida no seu país - veterano ator do cinema e da dramaturgia alemã -, Selge é mais um estrangeiro nas ruelas de Ouro Preto. “Eu não sinto falta de nada de lá”, conta. Longe de seus patrícios há mais de um mês, ele e a equipe partem para a Alemanha no começo de junho. Segundo Ansgar, serão mais dez dias de filmagens nos castelos e paisagens de Buckeburgo, no noroeste da Alemanha.
Trem de Deutschland
Selge divide as marcas frontais do cenário com Aldri da Anunciação. O ator encena Cândido, um Leonardo Pataca ouropretano que fala um alemão embebido na cachaça da terra. “O grande jogo é falar alemão com sotaque mineiro”, conta ele. Aldri foi descoberto durante a peça Namíbia, não!, de sua autoria, em que seu personagem declama um trecho do poema “Navio Negreiro” em alemão - língua que aprendeu durante estágios que fez no país europeu.
“Ele tem um bordão que é ‘Cândido resolve tudo’, e na Alemanha ele também resolve problemas”, conta Aldri. Ao contrário de sua peça, no filme a questão do racismo não é levantada explicitamente. Ainda assim, Aldri acredita que isso é um elemento da história vivida pelos personagens. “Esses dois caras juntos não precisam de discurso, mas isso é uma mensagem: a cooperação gera um terceiro lugar.”
Outros nomes nos créditos do filme são dos atores Stepan Nercessian e Thais Garayp. A banda Skank assina uma das faixas da trilha sonora do longa, com estreia prevista para 2015. A jornalista e atriz Marília Gabriela, que faz uma pequena participação no filme, conversou com a Tpm numa das pausas da gravação. Leia abaixo a entrevista.
TPM: O filme Uma canção é pra isso fala muito da busca. No caso, a busca de um músico por uma partitura. Você já realizou algum tipo de busca? Sair de um lugar atrás de algo? Alguma forma de escape?
Marília Gabriela: Estou numa crise de identidade. Acordei outro dia pensando em que raio de pessoa, afinal, sou eu. Usei isso para sentar e botar ideias num papel. Talvez eu, trabalhando um pouco agora, consiga fazer isso um pouco em profundidade. Em quem é que eu resultei a essa altura do campeonato? Depois de tantas coisas que eu vivi tão desatentamente, tão atabalhoadamente, que eu não me percebi mudando. Agora eu estou ficando velha e resolvi dar uma introspectada para descobrir, afinal, quem sou eu. Tudo que leio a meu respeito tem coisas surpreendetes. Essa? Eu?! Há julgamentos, análises e opiniões a meu respeito. E são muito diversas todas elas. Eu fico: sim, não, sou, não sou. Eu, comigo mesma, me olho no espelho e falo: que raio de mulher é essa? Quem é? Agora eu estou pensando em mexer aí dentro.
Dentro disso, ser atriz é algo que continua? Eu acho uma delícia ser atriz. Ser atriz é um facilitador para você botar para fora todas as pessoas que você tem dentro de si, e com a possibilidade de você não se julgar porque você aparentemente você está sendo outra pessoa. É se confrontar com seus demônios, seus doces seres e toda essa humanidade que todas as pessoas carregam dentro de si mesmas. Outro dia eu disse isso: acho que atuar é um exercício de sanidade, porque é uma maneira de você ficar mais compassiva, humana e de compreender melhor e até aceitar pessoas que, numa olhada rápida e precipitada, você pode não aprovar. E, de repente, quando você tem de virar essa pessoa, você passa a entendê-la melhor e compreendê-la.
Não acredito que em matéria de agenda deva ser conflitante, para você, ser atriz e jornalista. Mas uma coisa não descredita a outra? Isso é uma provocação. É uma provocação. Uma provocação comum, até, e um preconceito. Por que uma coisa desqualificaria a outra? Por que as pessoas não podem ser múltiplas e aplicadas no que se propõem fazer? Por que elas não podem eventualmente conseguir bons resultados dentro das inúmeras possibilidades que nós todos temos e que algumas pessoas se dispõem a encarar? Eu vou fazer 66 anos daqui a alguns dias. Eu comecei a trabalhar em 1969. Você continua me respeitando e acreditando em mim? Então veja você que eu tenho feito o que poderia parecer irresponsável ou desequilibrador de outra escolha, e mesmo assim você continua me respeitando. Fui cantora, fiz teatro, fiz cinema e meus programas de entrevista todos e, se agora começarem a me desacreditar, tudo bem porque vou me aposentar. A essa altura tudo é possível.
O que te dá tesão? Atuar me dá tesão. Viajar me dá tesão. Namorar, com as suas consequências, é o puro tesão. Acho que viver é um tesão, na maior parte dos dias. Na maior parte das vezes viver é um tesão. Eu não me queixo. Já fui mais mal humorada. Alguma vantagem tinha que ter nessa porcaria. A idade me trouxe isso de alguma forma: uma certa tolerância comigo mesma e um laissez-faire, uma alegria, um entendimento melhor das coisas, um não se importar muito com as chatices do cotidiano. Viver é um tesão.
A TPM viajou a Ouro Preto a convite da distribuidora do filme.