Transgredindo a paralisia

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por Mara Gabrilli

Mara Gabrilli reflete sobre o ioga e sua reabilitação

“O primeiro passo para a vitória é o desejo de vencer.” Esta é uma citação do Gandhi que me norteou por toda a vida. Foi com esse pensamento, que em 1990, resolvi correr uma ultra maratona de 101 km que durou mais de 20 horas. Hoje, aos 51, me sinto grata e convicta de que o meu corpo ainda carrega um enorme potencial. Sinto-me mais forte, flexível, preparada para qualquer desafio e ainda cheia de vontade de testar novos exercícios. Depois do ioga clássico, que há um bom tempo eu já pratico, recentemente, resolvi apostar no acroioga.

A prática acrobática pede muita confiança e entrega. Exige consciência corporal, força, flexibilidade, amplitude de movimento e alongamento, além de todos os ensinamentos da filosofia iogue, que já nos engrandece como ser humano. Além da sensação de que posso voar, sinto que estou cuidando do avesso também, porque a meditação, que é um “não movimento” do ioga, proporciona melhora na concentração e respiração.

Acredito que toda a mudança na nossa vida deve ser trabalhada de forma integrada. E isso vale para as pessoas com deficiência também. A reabilitação tem que envolver corpo, mente, espírito e intenção. Este autoconhecimento é o primeiro passo para resgatar a autoestima, beleza e tudo o que se aparentemente “perde” quando se adquire uma deficiência.

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 Quando sofri o acidente, passava muito tempo deitada. E isso me proporcionava horas e horas de momentos reflexivos. Depois de me reabilitar e passar a me locomover com uma cadeira, passei a ter uma pessoa o tempo todo comigo, agindo como uma extensão dos meus movimentos. Esse processo foi fundamental para que eu trabalhasse minha ansiedade e entendesse as mudanças que meu corpo e minha mente passavam. Precisei desacelerar para voltar a correr, a pedalar, a nadar... Só que de uma nova forma.

A verdade é que sempre gostei de me mexer, desde criança. Era uma autodidata de estripulias... Os movimentos autônomos foram perdidos, mas minha memória de movimento é algo que treino desde que me conheço como tetra. Para isso, volto a inteligência para dentro do meu corpo e me imagino fazendo determinados movimentos. Esse é um treino que qualquer pessoa pode fazer, independente de qual seja seu desejo e limitação física.

Aliás, nem todas as habilidades exigidas no ioga envolvem músculos e ossatura. Nas posições mais complexas, exige-se um esforço interno que emana muito mais da mente que do corpo. Por isso, o ioga pode ser praticado por qualquer pessoa. A concentração é algo que qualquer um pode trabalhar. É também algo que todo mundo deveria buscar.

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Muitos cadeirantes, por exemplo, podem praticar ioga sentados em sua própria cadeira. Outros já conseguem fazer a transferência e sentar-se sobre o mat. Além disso, há métodos em que se utilizam adaptações para facilitar o posicionamento. No meu caso é sempre um desafio executar cada posição sem conseguir me mexer sozinha. Eu estudo profundamente cada movimento antes, para saber o que terei de usar para coloca-lo em prática. Nestes casos, o esforço físico e mental é potencializado, mas a recompensa também.

O que mais gosto é o desafio de conseguir executar uma posição nova. Quando projeto um movimento na mente e consigo colocá-lo em prática, o prazer é sublime. Sinto-me uma tetra que transgride a paralisia e os parâmetros até então improváveis.

A verdade é que demorou pouco tempo para eu entender que eu ainda era eu, mesmo com o pescoço quebrado, mesmo fazendo xixi de sonda, mesmo fazendo cocô com supositório, mesmo usando cadeira de rodas, mesmo assinando com a boca, mesmo comendo, tomando banho e escovando os dentes com a ajuda de alguém... Só precisei usar a mim mesma como modelo.

Entender que um dia eu havia feito uma maratona de 101 km porque a minha cabeça comandou — e não só porque meu corpo respondia — foi fundamental para eu ainda me ver como a mesma Mara. E esse é o maior privilégio e estímulo que posso ter para continuar em constante movimento. Não perdi o que sou. E perceber isso me deu oportunidade de ser mais.

 

 

Créditos

Imagem principal: Jaciara Aires

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