Sauanne Bispo e a revolução da Go Diáspora

por Kátia Lessa

Esqueça Londres, Toronto ou Nova York. Conheça a dona de uma agência de turismo que organiza intercâmbios em países da diáspora africana

Quem vê Sauanne Bispo, de 34 anos, narrando com desenvoltura suas peripécias ao redor do mundo nem imagina que em 2011 sua rotina incluía plantões de domingo na Secretaria de Segurança Pública de Salvador como coordenadora de análise criminal. Por lá, ela contava, tabulava e analisava homicídios, em maioria de pessoas com as quais ela compartilhava a mesma cor de pele e ancestralidade. Estatística de formação, a soteropolitana resolveu mudar o curso da própria história e usar sua paixão por números para continuar a contar pessoas negras, mas dessa vez dentro de aviões. 

Depois de uma experiência de intercâmbio na Luisiana, sudeste dos Estados Unidos, ela voltou não apenas com o inglês em dia, mas com a famosa crise de repatriação. Largou o trabalho e partiu para uma segunda jornada como tripulante de um navio. Hoje já são três os passaportes carimbados, temporariamente na gaveta por conta da pandemia que fechou aeroportos pelo mundo. Agora empresária, a dona da Go Diáspora, uma agência de intercâmbios especializada em destinos da diáspora africana, soma trabalho com propósito, divide conhecimento e multiplica experiências educativas que empoderam, acolhem e de quebra ajudam a combater o racismo estrutural. 

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Em 2019, ela ficou entre as 10 empresas selecionadas entre mais de 1300 para participar de uma aceleração do Facebook. Ao receber a notícia, teve que deixar a cidade natal e ampliar sua jornada. Sauanne falou com a Tpm de sua casa em São Paulo:  

Tpm. Queria começar perguntando qual a história do seu nome.

Sauanne Bispo. Sauanne vem da junção de duas palavras em ioruba: babá (nascido na quinta-feira) + bwana (senhor), que resulta em Bawana, senhora nascida na quinta-feira, como de fato foi em 26/12/1985.  Sandra era minha madrinha, então trocaram o B pelo S para homenagear, e ficou Sawana. O último A foi trocado pelo E para suavizar e houve uma abrasileirada ao duplicar o N e substituir o W pelo U. Mas eu digo que significa “a iluminada”, que é como eu me sinto. 

Como a pandemia afetou quem trabalha com turismo na área de intercâmbio? Foi um susto. Imediatamente fizemos o resgate das pessoas que estavam fora. Uma das minhas intercambistas quase não conseguiu voltar ao país. Assim que ficamos sabendo sobre a Covid-19 começamos o processo de alteração de voos. Muitos países do continente africano não foram afetados logo no começo, mas as aulas foram suspensas e orientamos a todos que ficassem em casa. 

De que forma a sua família influenciou na formação da sua identidade como mulher negra no Brasil? Você sempre foi familiarizada com a sua ancestralidade? Sempre discutimos sobre questões ancestrais e raciais em casa. Minha vó usava palavras em iorubá em suas falas. Minha madrinha era da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos em Salvador, uma das primeiras irmandades dos homens negros no Brasil, e também yakekerê (segunda pessoa na casa de candomblé) num tradicional terreiro de candomblé de Salvador, Terreiro de Oxumarê, reconhecido como patrimônio cultural pelo IPHAN. Meu pai é artista plástico e faz muitas esculturas com foco na história e cultura afro-brasileira. Uma obra que gosto muito é Mãe, o mapa do Brasil esculpido dentro do mapa da Bahia, o que, por si só, já é uma aula. Minha mãe lecionava à noite num supletivo de uma conceituada instituição de ensino, onde, na década de 90, implantou a Semana da Consciência Negra. Ela sempre trabalhou com a conscientização e autoestima de seus alunos, que eram, em sua maioria, negros. E eu cresci vendo e fazendo parte disso. Quando ela optou por deixar de lecionar para abrir um restaurante, seus ex-alunos passaram a frequentar o local, assim como alunos do pré-vestibular do Instituto Cultural Steve Biko, e referências negras como Carlos Moore. O espaço ficou conhecido como Quilombo Aruá. Três primas foram eleitas Deusa do Ébano, concurso anual do bloco afro Ilê Aiyê, do qual faço parte desde criança. A negritude sempre fez parte da minha vida, em letramento e vivências.

Você chegou a sentir preconceito na infância e adolescência mesmo morando em uma cidade de população majoritariamente negra como Salvador?  Ser negra no Brasil é cansativo e doloroso, independentemente do local e contexto social. Em Salvador é mais agressivo, gritante e escancarado, pois a população negra, apesar de ser grande maioria, passando de 80%, não ocupa espaços de poder. Ainda somos minorizados neste ambientes. Passei e passo por situações de preconceito desde a infância. Em uma apresentação da escola, um colega que seria meu par não foi para não dançar comigo, mas eu me apresentei sozinha, ainda que todas as outras colegas tivessem seus pares. Também já fui apelidada de melanina e nariz de batata, como se as minhas características naturais fossem algo ruim, mas sempre soube que não eram. Até hoje meus colegas do colégio lembram que eu sempre corrigia quem me chamasse de morena e sempre levantei a pauta da negritude com orgulho.

Você é formada em estatística. Como foi parar na área de turismo? Durante a graduação em Estatística, com o objetivo de aprimorar o inglês para fazer mestrado em Econometria, eu realizei um intercâmbio nos Estados Unidos. De volta ao Brasil, não parei mais: fui tripulante de navio cruzeiro de uma companhia italiana, trainee na Africare, que tinha foco em desenvolvimento de países africanos, fiz parte da AIESEC, que é a maior organização de liderança jovem do mundo. Saí dessa experiência e fui trabalhar na Secretaria de Segurança Pública. Estar em um cargo público pode ser o desejo de muitas pessoas, mas eu sempre quis fazer a diferença. Sentia falta do uso dos dados para busca por impacto positivo. Via números que mostravam escancaradamente o genocídio da juventude negra e muito pouco mudando, então pedi exoneração e fui trabalhar na Índia. Pensando na minha volta ao Brasil após a conclusão do meu contrato na empresa de pesquisa de mercado onde trabalhava, comecei a aprofundar meu projeto de abrir uma agência de intercâmbio, deixando minhas habilidades com números para focar em minha relação com o mundo. Sempre gostei de viajar.

O que te levou a escolher o recorte racial para construir sua empresa? Abri minha empresa em 2013, e na época ela era uma agência de intercâmbio tradicional que trabalhava com países da América do Norte e Europa. No ano seguinte, após pesquisas sobre perfil do intercambista brasileiro e principais destinos, senti falta de países onde a cultura negra estivesse presente. Então busquei rankings globais de turismo, economia, segurança e infraestrutura e comecei a desenhar um produto voltado a países menos comuns, da África e sua diáspora, assim criei a Go Diáspora. Em 2015 comecei mandar pessoas para cursos de inglês no continente africano e espanhol no Caribe. Foi assim que a Go foi uma das dez selecionadas, dentre mais de 1300 empresas inscritas, para ser acelerada pela Artemísia e Facebook. Conheço 31 países, falo 4 idiomas e estou cansada de ser exceção em espaços onde deveria ser maioria, então passei a apresentar aos meus semelhantes o mundo que conheci e que sabia ser mais acolhedor.

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Porque você acha que um país de maioria negra nunca se interessou tanto pelo turismo em países africanos? No Brasil, o negro não é público alvo para consumo. Aqui, o que vem do negro é tido como ruim. Cabelo, nariz, cultura… Então não existe interesse em exaltar o que vem do negro. Aqui as pessoas só procuram país africano para ver animais. Mas encontram muito mais do que isso.

O que o contato real com o continente africano transformou em você? Enquanto na Índia as pessoas pediam pra tirar foto comigo na rua e na Rússia ninguém queria sentar ao meu lado no metrô, na África do Sul as pessoas falam comigo em zulu, acreditando que sou de lá. Isso dá uma sensação única de pertencimento. Além disso, na África, em geral, eu sou apenas uma pessoa, no Brasil eu sou sempre um corpo negro.

Você acredita que o chamado intercâmbio cultural é estruturado para atender uma sociedade branca? Qual o impacto disso? A cultura de viajar ao exterior para aprender idiomas seria algo acessível à população afro-brasileira se a sociedade nos permitisse sair da base da pirâmide, ocupar os espaços que nos cabem e assim ter as necessárias informações e recursos. Mas, antes mesmo do contexto socioeconômico, é importante ressaltar que as empresas de intercâmbio não dialogavam com a população negra, tampouco as agências de viagens turísticas e companhias aéreas. Antes da Go Diáspora, eu não via imagens de negros nos sites destas empresas, e olha que eu conheço bem o mercado, atuo no setor desde 2009. Definitivamente não há como exigir que o negro simplesmente deseje fazer intercâmbio, quando, o tempo todo, o sistema está blindado. Permitir que pessoas negras viajem, aprendam idiomas, ampliem horizontes e repertórios histórico, econômico e cultural, seria um tiro pela culatra para uma sociedade que não quer abrir mão de seus privilégios.

Qual a importância de fazer com que negros sejam vistos como corpos viajantes? Movimentação da economia, não apenas no setor de turismo, mas na própria cadeia produtiva e pensante, com pessoas qualificadas atuando no mercado de trabalho ou empreendendo de maneira inovadora e intercontinental. Além disso, autoestima, reconhecer e assumir diferentes papéis no âmbito social, e uma mente revigorada que pode brilhar em diferentes espaços. Eu não consigo entender como, ao me hospedar na unidade brasileira de um renomado hotel de rede, funcionários falam comigo em inglês. Na cabeça deles, qual a probabilidade de uma pessoa negra brasileira se hospedar ali? A resposta deveria ser proporcional ao que esta população representa no Brasil: 56%. Corpos negros viajantes educariam, ainda que sem falar, as diferentes cadeias de serviços no Brasil e mundo afora.

Quais as maiores dificuldades que negros encontram ao viajar e que tipo de coisa já aconteceu com você? Como mencionei, ser 'exótica do bem' na Índia, 'do mal' na Rússia ou ter que explicar que o Brasil tem a maior população negra fora do continente africano nos Estados Unidos, pois muitos sequer sabiam que há negros aqui. O caso do hotel é um outro exemplo: não estão preparados para ver pessoas negras como hóspedes. Já fui, como cliente oculta, à uma grande agência de viagens para orçar uma viagem à Fernando de Noronha e saí com um orçamento para Aracaju, pois foi o que o agente acreditou ser melhor pra mim. Coitados dos meus 3 passaportes, ficaram totalmente desacreditados! [risos]

Você acha que os destinos tradicionalmente mais explorados para intercâmbio podem ser hostis para um viajante negro? Não necessariamente mais hostis, pois o negro brasileiro está escolado neste quesito. Racismo no Brasil não é para amadores. Mas eu diria que destinos tradicionais são menos agregadores, pois a conexão com o local, sua história, com as pessoas, são o que diferenciam intercâmbio cultural de turismo. Uma coisa é uma mulher negra estudar inglês no Canadá, outra coisa é esta mesma mulher ter uma vivência em Gana. Como ela se enxerga nos lugares através da identificação com semelhantes, vendo pessoas como ela ocupando diferentes espaços. As mentiras contadas sobre os corpos negros começam a perder força e o empoderamento negro se torna ainda mais potente.

Você acredita que intercambistas brancos em países da diáspora negra podem ajudar a mudar a estrutura racista da sociedade? Acredito na responsabilidade que deve ser assumida pelas pessoas brancas nesta mudança do racismo estrutural, já que não foi algo criado por negros, tampouco somos os que usufruem dos privilégios deste sistema. É justamente por isso que a Go Diáspora é uma empresa que atende também este público, não só individualmente, mas através de relacionamento com empresas, orientando lideranças em imersões no continente africano. O mesmo fazemos com instituições de ensino, onde não apenas os alunos são impactados, mas as famílias e corpos docentes. Ao mostrar de onde viemos, como viveríamos caso não tivéssemos sido trazidos pra cá, e ao proporcionar à pessoa branca a sensação de ser minoria nos espaços, espero que elas reconheçam seus privilégios e assumam seu papel de agente responsável pela mudança.

Como você foi impactada pelo movimento Black Lives Matter? Qual a importância dele no mundo de hoje? O movimento BLM, apesar de existente desde 2013, ganhou maior notoriedade com a pandemia e o fato de estarmos trancados em casa, nos alimentando da imprensa. Caso estivéssemos na rotina comum, cada um com suas reuniões, deslocamentos e menos sensibilidade e empatia, a morte de um homem negro nos Estados Unidos não teria causado tamanha mobilização no Brasil, onde um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos. As pessoas se mobilizaram, consequentemente as empresas e marcas. Os negros, que só eram procurados para papéis com escravos, detentos, moradores de periferias ou apenas tinham audiência em novembro, ocuparam espaços, ganharam visibilidade e tiveram suas vozes escutadas. Eu saí da caixa enquanto pessoa física, ganhei notoriedade, monetizei minhas ações e fiz excelentes negócios. As pessoas estão acordando para o racismo, reconhecendo seus atos, buscando aprender o certo, cobrando posicionamento das empresas e escolas. Acredito ser uma revolução sem volta.

Créditos

Imagem principal: Arquivo pessoal

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