Como é ser mãe de crianças pretas no Brasil?

por Dandara Fonseca

Karol Conka, Deh Bastos e outras mulheres negras falam sobre a experiência e os desafios da maternidade

Se tornar mãe e colocar uma criança no mundo é uma equação complexa, que envolve dúvidas, medos, idealizações e receios. Ser uma mãe negra e criar uma criança negra no mundo em que vivemos aumenta ainda mais a complexidade dessa experiência. "Se estivessem tão claras as consequências do racismo nas crianças, eu não sei se teria planejado ter um filho", conta Deh Bastos, cofundadora do projeto Criando Crianças Pretas

A experiência da maternidade começou diferente do que ela imaginava logo no hospital. "Na hora do parto, a médica virou pra mim e falou que eu ia ter que tirar 'isso aí do cabelo' – referindo-se às minhas tranças – para entrar no centro cirúrgico", conta Deh, que deu à luz à José aos 34 anos. "Existe, sim, um problema por conta do bisturi elétrico. Isso serviria, por exemplo, para as mulheres brancas que usam megahair, mas ninguém diz isso a elas dessa forma." Depois de seu filho nascer, ela foi questionada ao dizer que a cor que deveria constar no registro dele era a preta. 

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Com a chegada de José nasceu uma nova preocupação: o medo de, por seu filho ser um negro de pele clara, ele ter a sensação de não pertencer a nenhum lugar, algo comum na vivência de negros não retintos. Para se aprofundar nessa questão, Deh decidiu fazer uma festa com o tema "O pequeno príncipe negro no reino de Wakanda". "Estamos falando de uma pele mais clara, que não vai sofrer a crueldade do racismo como uma pessoa retinta, mas que se encontra em um limbo racial", conta. Depois da festa, a comunicadora pensou que outras mães de crianças negras poderiam estar enfrentando questões relacionadas à raça e decidiu abrir um espaço para essas conversas, que batizou de Criando Crianças Pretas. 

A estudante de design gráfico Maria Fernanda Vilela também percebeu logo no início da gestação que a experiência da maternidade seria atravessada por questões raciais. "Na sala de espera da obstetra não havia uma foto de um casal negro – quem dirá de mãe solo negra ou de algum casal LGBT. Foi ali que eu percebi que aquela jornada seria diferente pra mim e, futuramente, para o meu bebê", conta ela, que ficou grávida aos 20 anos.

Seu filho, Otávio, tem três anos, mas Maria Fernanda já se preocupa com todas as violências que ele pode sofrer ao longo da vida. "Fico me perguntando: como será quando ele for a algum show? E quando estiver na universidade, será que vai passar por algum tipo de exclusão se for cotista?", questiona. Para a psicóloga perinatal Fabiana Villas Boas, colaboradora do Instituto Amma Psique e Negritude, essa é uma questão comum entre as mulheres negras: "Elas se indagam como vão colocar um filho no mundo e conseguir protegê-lo das violências, ou como vão lidar quando ele passar por elas."

A influenciadora Rízia Cerqueira conta que logo que ficou grávida começou a pensar na forma como criaria seu filho. "Colocar uma criança negra no mundo é pensar que ela vem com uma bagagem. Você tem que explicar como é o dia a dia de uma pessoa negra no Brasil, como é lidar com a violência na rua", diz a alagoana. Aos 26 anos, ela é mãe de Yaweh, de um mês, um sonho que realizou depois de ter conquistado, em primeiro lugar, sua independência financeira. "Eu tive vários problemas com relacionamentos, inclusive de parceiros que não me assumiram. Tinha muito medo da questão da solidão da mulher negra, cheguei a pensar que nunca ia conseguir ser mãe e, se um dia conseguisse, seria mãe solteira", conta.

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Para a cantora Karol Conka, a gravidez veio de forma inesperada, aos 19 anos. "Na época, foi um trauma, porque eu já me apresentava e parecia que meu sonho de seguir uma carreira artística iria por água abaixo", diz. "Mas o problema maior foi enfrentar uma sociedade que julgava uma menina preta, da periferia, rapper e mãe solteira." Mãe de Jorge, hoje com 14 anos, ela acredita que a experiência foi essencial para formar sua personalidade.

Apesar de seu filho ter a pele mais clara e não viver as mesmas frustrações raciais que ela, Karol acredita que algumas precauções que ouviu de seus pais e avós acabaram sendo passadas para Jorge. "Somos ensinados desde pequenos a andar no mercado sem encostar na prateleira para não nos acusarem de roubo, nos dizem para sermos extremamente educados para não acharem que somos bandidos", explica. "Além disso, eu nunca deixei meu filho aos cuidados de outras pessoas a não ser a avó dele e o pai."

"Uma das preocupações das mães é como elas podem fazer para que seus filhos não precisem passar por tantas situações traumáticas como as que elas passaram", diz a psicóloga Fabiana Villas Boas. A escola é o local onde normalmente acontecem os primeiros episódios de racismo e é onde as crianças se percebem negras ou entendem o peso que sua cor pode ter na sociedade. Fabiana conta que, para evitar ambientes tóxicos, as mães têm buscado cada vez mais escolas com colegas e profissionais negros, as transformando assim também em espaços de identificação. 

Através dos relatos de mães no Criando Crianças Pretas, Deh Bastos percebeu uma série de cuidados que nunca passariam pela cabeça de mulheres com filhos brancos. "Uma das preocupações das mães de crianças pretas é sempre passar hidratante nelas antes de sair. Porque senão a pele pode ficar cinza e isso é motivo de chacota", diz. "Outra é o mau cheiro na axila, que, se for mais forte, pode causar zoação. Então as crianças negras começam a usar desodorante muito novinhas." Para ela, uma das coisas mais importantes que uma mãe pode dar aos filhos é a representatividade. "Quero normatizar os corpos pretos, dar referências a ele por meio de bonecos negros, livros, desenhos, vídeos", diz.

Melhor não

Muitas vezes, o racismo tem consequências fatais para as crianças e jovens negros. Segundo dados do relatório da Unicef de 2017, o Brasil é o quinto país no mundo com a pior taxa de homicídio de crianças e adolescentes. De 1996 a 2017, 191 mil crianças e adolescentes de 10 a 19 anos foram vítimas de homicídio no Brasil. Em 2014, 75% delas eram negras. 

Histórias como as de Ágata Félix, Miguel Otávio e Marcos Vinícius têm feito mulheres negras desistirem da maternidade. Esse é o caso de Débora Cortenove, de 25 anos. As situações de racismo que viveu e presenciou fizeram com que a estudante de educação física decidisse não ter filhos. "As conversas sobre maternidade têm em sua maioria um recorte branco e giram em torno da questão do amor, do carinho. Mas, quando o filho é negro, a preocupação é se ele vai voltar pra casa", diz.

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Ela também ressalta a questão do gênero, que faz com que homens e mulheres vivenciem o racismo de formas distintas. "Se for um filho homem, a gente não sabe se ele vai ser preso injustamente. Se for uma mulher, temos medo dela ser hiperssexualizada e alvo de abusos." Para Débora, mesmo a ideia de entrar em um relacionamento interracial e ter uma criança branca a remete a situações que ela não deseja passar. "Quando sair com essa criança na rua, as pessoas sempre vão achar que eu sou a babá, ou podem pensar que eu estou a sequestrando", explica.

Aos 20 anos, a estudante de jornalismo Gabriele Oliveira compartilha de um sentimento parecido. "Eu passei por muitas opressões na vida por ser mulher, negra e pobre. Colocando um filho no mundo, provavelmente vou estar passando a ele esses marcadores sociais que vão acompanhá-lo pelo resto da vida", diz. O fato de estar em um relacionando estável com um homem branco também traz questões comuns a outras mães negras. "Se nasce uma criança preta clara, ela vai ter que passar pelo processo de se encontrar em um limbo racial, sem saber direito quem ela é", diz.

A psicóloga perinatal Fabiana Villas Boas pontua que, muitas vezes, a decisão de não ter filhos por questões relacionadas à raça é feita de forma inconsciente: "Há mulheres negras que não tiveram filhos e, em algum momento da vida, percebem que essa decisão está ligada ao fato de que ter um filho negro no mundo em que vivemos é muito complexo." Ela reforça para suas pacientes que ser negra e mãe não envolve apenas dificuldades, mas também potência. "É muito bom se conhecer melhor e se cuidar antes de ter um filho. A negritude é um aspecto importante da maternidade, mas não ela toda", diz. 

Créditos

Imagem principal: Camile Pasquarelli

Camile Pasquarelli é ilustradora e dona da página Inspire Outras (@inspireoutras), que desde 2019 espalha mensagens de inspiração para mulheres e já acumula mais de 300 mil seguidores. Apaixonada por animais, Camile descobriu este ano um novo mundo: a gravidez. Vamos inspirar outras?

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