A dor das mulheres que mataram pra se defender

por Sara Stopazzolli

Roteirista Sara Stopazzolli, do filme ”Legítima defesa”, lembra o que viveu e ouviu durante o processo de pesquisa para o documentário

Em 2013, minha irmã, produtora de cinema, sugeriu de fazermos um filme sobre mulheres que sofreram violência doméstica e que, para sobreviver, acabaram matando seus companheiros. Imediatamente comecei a pesquisar e o resultado deste trabalho é o que se vê no documentário Legítima defesa, que estreou dia 2 de dezembro na mostra competitiva do Festival Internacional Mujeres en Foco, em Buenos Aires, e, no dia 9, no canal CineBrasilTV (Sky).

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Não existem estatísticas específicas sobre a mulher que mata em legítima defesa. O certo é que ocupa alguma fatia da taxa de homicídios praticados por mulheres, que no Brasil é de 6%. Para chegar até esses casos foi preciso ler muitos processos judiciais e ir a campo, conversar principalmente com defensores públicos e funcionários de fóruns que, por questões orçamentárias, delimitei aos estados de Rio de Janeiro e São Paulo. Até o momento de fechar o roteiro, no ano passado, minha planilha contava com 50 casos ocorridos nos últimos 10 anos. Encontrar essas mulheres através dos dados que constam nos processos não foi fácil.  E chegar até elas, iniciar uma conversa, tocar na ferida, menos ainda.

Segundo o artigo 25 do Código Penal, entende-se por legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Na prática, a maioria dos casos apurados não se enquadra nessa definição. Como a mulher normalmente é fisicamente menos forte do que o homem, entrar numa briga corporal significaria sua morte. Assim, após chegarem ao limite, esperam um outro momento para se defender. A tese defensiva nestes casos chama-se Inexigibilidade de Conduta Diversa e significa que, diante dos fatos,  não se poderia exigir da ré outra conduta.

Só quando há provas contundentes de uma legítima defesa, a mulher é absolvida sumariamente, ou seja, o juiz não aceita a denúncia e ela não vai ao Tribunal do Júri. Da minha pesquisa, 10% se encaixa aí, inclusive o caso de Úrsula, que participa do filme. Outro caso de absolvição sumária que mexeu não só comigo como com todos que acompanharam a audiência foi o de E., que matou o marido, um policial militar, com um tiro do revólver no meio de uma violência sexual. Ela narrou os 10 anos de violência sofrida e o testemunho da mãe da vítima, vizinha deles, confirmou tudo. “Eu vou abrir mão da minha dor de mãe, mas não vou te deixar sozinha”, disse a ex-sogra. Infelizmente, E. desistiu de participar do documentário pouco antes das filmagens.

Em outras situações, quando restam dúvidas, o juiz encaminha a ré para o Tribunal do Júri, onde será julgada por sete membros da sociedade civil, para os quais Direito, Lei e Justiça nem sempre são sinônimos. Na maioria dos casos que acompanhei, as mulheres foram absolvidas por Inexigibilidade de Conduta Diversa ou Clemência. Inclusive em dois casos em que as mulheres foram presas preventivamente e acusadas, com base no inquérito policial, de homicídio triplamente qualificado.  É impressionante como uma mulher taxada de assassina cruel se transforma após conseguir expor sua história.

Percebi, no entanto, que a absolvição importa, mas não as livra da culpa. Além da autocondenação, elas ainda precisam lidar com o julgamento social e, em alguns casos, com represálias da família da vítima. A única coisa que todas têm em comum é o apoio dos filhos, muitas vezes testemunhas oculares de toda a tragédia. Em muitos casos, essas mulheres acabam se mudando, deixam tudo para trás para começar uma nova vida do zero.

Uma situação assim que me chamou a atenção foi de J. , que  em abril de 2009 deu uma facada no olho de seu ex-companheiro, que a violentava por não aceitar o fim da relação. Ele faleceu alguns dias depois. Ela alegou legítima defesa e junto aos autos do processo estão duas denúncias de violência doméstica contra ele. Uma audiência para apurar as agressões fora marcada para o mês de julho. Mas abril chegou antes. Conversei com o pai dela e ele pediu que eu a deixasse para lá, ela está em outra cidade tentando “sobreviver”.

Dos 50 casos de minha planilha, apenas 10 mulheres foram encontradas e seis toparam mostrar o rosto no documentário. Dessas, uma faleceu e duas desistiram às vésperas da filmagem. Percebi que o mais comum para quem viveu uma situação traumática é, diante do abatimento, se calar, e lidar sozinha com o vai e vem das memórias. Certa vez até pensei em desistir, achando que estava sendo uma invasora da dor alheia. Mas logo descobri um outro lado: o da fala enquanto espaço para cura. Havia uma minoria que, depois de alguns anos de elaboração do luto, queria ser ouvida, colocar para fora, emitir um alerta a outras mulheres vítimas de homens violentos, fazê-las saber que não estão sozinhas.

Respeito o silêncio das que não quiseram falar e admiro a coragem das que falaram. É difícil resistir e agir no mundo sem expor suas tragédias. Essas mulheres trazem histórias profundas, com muitas camadas, que provocam questionamentos importantes sobre relacionamentos, machismo, limites humanos, sistema judiciário. Não é justo resumi-las à fotografia de olhar assustado nas páginas policias, à legenda- rótulo e ao silêncio de sempre.

* Os nomes que aparecem só com a inicial são de mulheres que não toparam participar do filme.

* Sara Stopazzolli é pesquisadora e roteirista.

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