Sabrina Fernandes: Se quiser mudar o mundo, vem junto

por Juliana Sayuri

Capaz de combinar Marx, Gramsci e delineado gatinho, a socióloga dona do canal Tese Onze lança livro que traz bê-á-bá político para quem quer se engajar e transformar radicalmente a realidade

“Pessimismo da razão e otimismo da vontade, vocês já ouviram essa frase, né?”, pergunta Sabrina Fernandes, citando a fórmula do escritor francês Romain Rolland, que ficou famosa nos livros do filósofo italiano Antonio Gramsci, enquanto passa primer no rosto. “Pessimismo decorre da análise, de olhar a realidade e ver que a gente está realmente muito ferrado. Maaas, otimismo da vontade para transformar a realidade demonstra que o pessimismo também tem outro lado. Sou extremamente pessimista. Mas, quando olho para a situação atual, vejo a necessidade de um senso de urgência gigantesco. A década de 2020 é crucial para tentar desacelerar o processo da mudança climática”, acrescenta a acadêmica goiana de 32 anos, desta vez, pincelando uma sombra rosa cintilante nos olhos.

Sentir-se pessimista e se questionar "o que fazer" para mudar a realidade pode ser positivo pois nos faz parar e pensar "o que nós podemos fazer" – uma ação coletiva e organizada, seja em um pequeno movimento de bairro, seja em um mega partido –, ela explica enquanto passa um make todo com produtos veganos em um vídeo no Tese Onze, no YouTube. Desde 2017 no ar, o canal foi batizado em referência à 11a tese de Karl Marx: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo”.

Foi nesse estilo jovial, capaz de combinar Marx, Gramsci e delineado gatinho, que a socióloga conquistou mais de 300 mil seguidores no YouTube, 230 mil no Instagram e 200 mil no Twitter – os mais mobilizados são carinhosamente conhecidos como “tese onzers”. Na leva de jovens influenciadores de esquerda também estão seu irmão, Samuel Silva Borges, e seu marido, Thiago Ávila.

Em março, ela foi entrevistada por Caetano Veloso na Mídia Ninja. Em junho, viu seu nome subir aos trending topics do Twitter devido a uma campanha para que ela fosse convidada para o programa Roda Viva, da TV Cultura, alavancada pelo amigo Jones Manoel, historiador e youtuber marxista.

Na internet, Sabrina busca discutir didaticamente questões como comunismo, feminismo e liberalismo. Entre os ismos, ecossocialismo é a sua palavra-chave: um projeto político que defende uma ruptura revolucionária para construir uma sociedade socialista com equilíbrio ecológico. Além do ativismo digital, é politicamente organizada: filiada ao PSOL e integrante do coletivo ecossocialista Subverta, declara-se marxista, militante feminista e vegana. “E radical”, acrescenta a autora de Se quiser mudar o mundo (Editora Planeta), lançado no fim de outubro. Para mudar o mundo, diz o livro novo, antes de tudo é preciso normalizar a radicalidade, quer dizer, considerar que o que parece distante demais é, na verdade, possível – e que amanhã pode se tornar um novo normal, mais justo, melhor.

Sabrina é radical, revolucionária, teórica e, ao mesmo tempo, pop, fã de Doctor Who, Harry Potter e sombra colorida. “Minha cara limpa não faz de mim mais desconstruída e inteligente. Minha cara enfeitada não faz de mim menos comunista e feminista. Se você só julga uma luta, uma ideia, uma pessoa, primariamente pela sua expressão estética, isso diz muito sobre superficialidade: sobre a sua”, certa vez escreveu no Instagram.

Mestre em economia política e doutora em sociologia pela Universidade Carleton, no Canadá, ela atualmente faz pós-doutorado na Fundação Rosa Luxemburgo, na Alemanha – por enquanto à distância, devido à pandemia de Covid-19. Também é autora de Sintomas mórbidos: a encruzilhada da esquerda brasileira (Autonomia Literária, 2019) e, no fim de 2021, se tudo der certo, deve lançar o documentário Sumud, sobre a Palestina. De Brasília, a socióloga conversou com a Tpm sobre livros, luta, liderança, veganismo e vaidade.

Tpm. No novo livro, você propõe um ‘guia político’ com linguagem didática para quem quer mudar o mundo, mas diz que isso não deve ser entendido como um manual de instruções. Para mudar o mundo precisa passar por Marx, a ideia de capital e demais palavras-chaves da teoria?

Sabrina Fernandes. Se ler Marx for pré-requisito estamos ferrados, podemos desistir, vamos viver no capitalismo até o colapso final. Mas minha perspectiva é que quem quer se envolver mais diretamente na política precisa ter uma compreensão crítica da realidade. No livro, minha ideia é então oferecer essas ferramentas. Trabalho muito com pedagogia de Paulo Freire: posso passar uma mensagem, mas quero que quem me lê compreenda os conceitos políticos e tenha condições de avaliar a realidade para poder agir. E que me questione, para que eu também possa aprender. Marx diz que o educador também precisa ser educado, o que é um processo importante. A partir disso é possível formar lideranças, que podem inspirar e mobilizar os outros, sem necessariamente explicar o que é “dialética”, por exemplo. Além disso, muitas palavras podem ser compreendidas pela própria realidade do dia a dia. Sempre lembro de um trecho que me marcou muito na autobiografia da [filósofa marxista norte-americana] Angela Davis. Ela conta que certa vez estava em um grupo de estudos de mulheres negras, trabalhadoras, que estavam lendo Lênin. E ela lembra que elas diziam que não entenderam tudo, mas entenderam que o que ele escreveu dizia respeito a elas. Que fazia sentido na realidade delas. Quer dizer, você não precisa ler Marx ou saber definir detalhadamente o que é luta de classes, mas você vê no cotidiano a diferença entre as classes.

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Tudo é político, você diz no livro. Como isso impacta nossas escolhas individuais no cotidiano? E como lidar com o sentimento de culpa por não ser tão politizado no dia a dia, muitas vezes por falta de recursos ou até de tempo? A culpa tende a aprisionar. Prefiro o sentimento de incômodo, uma pulguinha atrás da orelha. Você para e pensa: “estou fazendo isso, mas isso não está totalmente de acordo com o que eu penso teoricamente; então por que estou fazendo assim e não assado?” Se seu incômodo gera curiosidade, aí a gente abre um caminho produtivo. Para mim, foi um pouco assim no caso do veganismo. Passei por várias fases até encontrar esse incômodo, que despertou a curiosidade, que me levou à mudança. Individualmente, tenho acesso a autonomia alimentar e, se posso fazer escolhas melhores, por que não? E não é só uma questão individual: isso abre pontes para descobrir outras referências, que nos inspiram ao longo do caminho. Eu era ovolactovegetariana e visitei um amigo que, por acaso, estava assistindo o Vegano Vitor no YouTube. Vi um vídeo que me deixou muito incomodada, passei a pesquisar mais sobre as relações entre a crueldade animal e as indústrias que exploram trabalhadores visando lucro. Isso fez transicionar de vez para o veganismo. Agora, alguém pode escolher uma dieta vegetariana estrita sem se importar com o engajamento político contra crueldade animal ou as relações de classe que estão por trás da indústria. Escolher uma dieta assim é um ato despolitizado, quer dizer, não engaja para mudar. Quando a gente fala de veganismo político, a gente está falando de veganismo politizado, em que é preciso pensar a raiz do problema. A partir disso é possível encontrar outras pessoas para agir além da dimensão individual. Não é que o individual tenha zero impacto, mas tem pequeno potencial transformador da sociedade.

Qual é o potencial de transformação no YouTube? O pessoal compreende que ser youtuber também é trabalho e transformação política? No começo, o pessoal dizia: “Ah, se você tá no YouTube, que pertence a uma grande corporação, o Google, você está colaborando com a estrutura de exploração”. A gente precisava parar e explicar a diferença entre consumo e produção – o ponto é o fim da exploração, e não da produção. Na verdade, o YouTube é quem está explorando os produtores de conteúdo. Estou ali, trabalho e posso ganhar um pouquinho com a monetização, mas o YouTube ganha muito mais e é assim a lógica do lucro no capitalismo. Por isso temos o Apoia.Se, uma campanha de financiamento coletivo que é o que permite manter o trabalho com independência: isso quer dizer que quem contribui não está, entre aspas, pagando 10 minutos de vídeo, mas está pagando para que eu possa ter 20 horas de trabalho para produzir o vídeo. É Marx de novo: ao pensar em horas de trabalho, em tempo, as pessoas passam a entender que isso é também trabalho. Hoje é muito mais tranquilo, pois se alguém levanta essas questões, o próprio público vai lá e corrige nos comentários. Há uma quantidade legal de pessoas politizadas e atentas que acompanham o canal. Como não produzo entretenimento, mas conteúdo de educação política, então foi preciso cativar as pessoas pouco a pouco. A gente brinca que são os “tese onzers” – eles que inventaram a expressão e eu adotei. Eles leem os livros, debatem, compartilham os vídeos e, o mais importante, passaram a militar. Esse é o maior pagamento do processo, é isso que me impulsiona. O Tese Onze não é sobre números. Poderia ter 2 milhões de inscritos e estar todo mundo ali assistindo como se fosse entretenimento ou qualquer série da Netflix, mas não é esse o propósito. Prefiro o crescimento mais lento, mas orgânico, que engaja politicamente para a luta ecossocialista.

Você já foi criticada por questões que nada têm a ver com argumentos, como seu visual? Sim, por gostar de maquiagem, muita gente já vem me chamando burguesa ou patricinha – machismo impregnado nos comentários, né? Já fui muito questionada e, por isso, refleti bastante sobre esse assunto. Desde jovenzinha gosto de me maquiar, adorava passar sombra na sétima série, para se ter ideia. Para mim, sempre foi algo divertido, andar de batom e olho colorido, é uma expressão da minha personalidade. É relaxante e até terapêutico, um momento só meu. E, na verdade, até quem diz que não tem nenhuma vaidade se veste assim ou assado para passar essa imagem de não-vaidade. Foi na universidade que notei mais essa questão. Nunca esqueci um episódio no mestrado. Eu estava estudando no escritório e depois ia com outros colegas a um evento perto do Congresso. No ônibus a caminho de lá, abri a bolsa, peguei um lápis de olho e retoquei meu delineado gatinho. Os dois colegas pararam e ficaram me olhando horrorizados, e me questionaram: como você tem tempo para isso? Fiquei chocada porque quando eles, homens, saem da aula e vão para o bar ou outro lazer, é aceitável; mas mulheres acadêmicas e ativistas se maquiando é inaceitável, fútil, desperdício de tempo. É como se eu fosse menos acadêmica, menos ativista por conta disso. Mas, no fim, quem estava lá tirando nota A+ e participando de piquete era eu. No YouTube, isso é multiplicado por mil.

Tempos atrás, o psicanalista Christian Dunker publicou um texto dizendo que a esquerda não deveria detestar dinheiro. Avançou essa discussão ou ainda hoje predomina a ideia de ‘socialista de iPhone’? Avançou, mas não tanto quanto o necessário. Talvez por causa do sentimento de culpa que estávamos falando. Fiz um vídeo sobre socialista de iPhone, em que explico a diferença entre propriedade privada e bens pessoais. Socialismo é sobre abolir a propriedade privada, não os bens de consumo – e a ideia, na verdade, é que todos tenham acesso aos bens de consumo. Umas pessoas entenderam como “então tá liberado ter iPhone”. Vê como o que guia a discussão é a culpa? Do tipo: “Ah, tô me sentindo mal por ter um iPhone, mas agora está tudo certo, porque a Sabrina diz que pode”. Não, não é essa questão. O vídeo é de 2018, mas estou pensando em gravar outro, pois essas discussões sempre voltam. Meu interesse é demonstrar que nossas posições de classe derivam da produção e não do consumo. Lógico que a classe também passa por certos símbolos de status, mas também temos ricaços minimalistas, como Carlos Slim, o homem mais rico do México, que se diz “frugal”, adepto de um estilo de vida simples. Slim é burguês, não é classe trabalhadora, logo sua posição de classe deriva da produção e não do consumo. Agora, alguém vai admirá-lo porque ele se diz simples, mas ao mesmo tempo domina o país inteiro?

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Ou bilionários de moletom, como Mark Zuckerberg. Exato, é até um tipo de fantasia. Ser de esquerda não quer dizer defender pobreza para todos ou nada assim. É defender condições para todos, mexendo nas estruturas. Focar no consumo individual é um reflexo do próprio neoliberalismo, que desconsidera toda a lógica de produção. O problema não está no celular per se; está no processo produtivo explorador. É diferente, por exemplo, do consumo de carne: além do contexto de exploração, nós somos onívoros e temos, portanto, a possibilidade de escolher comer outros alimentos além da carne. Às vezes o pessoal pergunta: “Ué, mas a Sabrina diz que pode iPhone, mas não pode bife?” Pois é, tem a totalidade do capitalismo e tem as brechas onde nós podemos fazer escolhas politizadas. Gosto dessas questões, pois elas indicam nuances nas dúvidas, nas discussões. É um ganho em termos de formação política. Além do mais, não digo isso pode, isso não pode, isso tá certo, isso tá errado. Busco ensinar os conceitos, dar as ferramentas e, diante de muitas questões, prefiro devolver a pergunta. O que você acha? Você acha certo? Por quê? Não quero ser guru, quero que as pessoas possam decidir, por elas mesmas, se o que eu disse contribui ou não. É uma construção coletiva de conhecimento. Não sei tudo e tenho horror a “tudologia”. Às vezes me pedem vídeos e eu transfiro, indico, compartilho outros canais, mesmo que isso leve a perder visualizações por conta do algoritmo. Não vou gravar vídeo sobre Che Guevara, Jones já tem um ótimo, oh o link. Não vou gravar sobre agronegócio, Thiago já fez, vê lá. Quanto mais gente vier junto, melhor.

No Twitter, certa vez você comentou que gostaria de se tornar ‘obsoleta’, que espera que quem aprende contigo te ultrapasse. Fui até acusada de ter baixa autoestima intelectual por dizer isso [risos]. Mas é o objetivo, trabalho duro para me tornar obsoleta. Primeiro, quero literalmente que os alunos superem o mestre, pois é a lógica da construção do conhecimento. Segundo, não quero precisar estar presente o tempo inteiro, afinal, posso morrer amanhã andando na rua de repente com um aneurisma e aí, a luta acabou? Quero que as pessoas que aprendem comigo sejam muito melhores do que eu. Se um dia eu me aposentar e parar, que eu siga aprendendo com elas. E sinta a paz de saber que fiz tudo o que era possível fazer.

Para mudar o mundo precisa ter lideranças? Precisa. Porque referências importam, inspiram, mobilizam. Mas ser líder não significa ser autoridade absoluta e inquestionável, ao menos eu espero que não signifique isso. Devemos evitar endeusamentos e personalismos, pensar que alguém é infalível, incriticável. Um ponto ótimo levantado por Marx é o colapso entre trabalho manual e intelectual, ou seja, a possibilidade de alguém se dedicar a diferentes atividades, com rotatividade de funções. O que funciona para evitar uma lógica de infalibilidade, pois se você tiver as mesmas lideranças sempre para tudo, que supostamente saberiam de tudo mais que todos, não há espaço para questionamento, discussão, crítica construtiva. Isso leva todo mundo para o penhasco.

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No livro Sintomas Mórbidos, de 2019, você trata da fragmentação das esquerdas. Como vê a discussão de buscar aliados no Brasil de 2020? A esquerda organizada, da moderada à mais radical, está mais acostumada com debates, críticas construtivas, conversas acaloradas. Outras alas talvez não estejam tão habituadas, por exemplo, pessoas despolitizadas, pessoas que não eram de esquerda e não apoiaram Bolsonaro, pessoas que apoiaram Bolsonaro e se arrependeram. Daí que muita gente confunde crítica com ataque. Não é porque é aliado que não pode existir crítica. Criticar, perguntar, pedir fonte de informação não é quebrar aliança, ajudar a extrema direita ou eleger fulano fascista. Levantar essas questões ajuda a politizar a discussão de fundo. Quando se fala de frente ampla, uma divergência que temos encontrado principalmente entre a esquerda radical e o campo progressista mais ao centro é o protagonismo, quer dizer, a esquerda radical precisar se dobrar à liderança deles. Não é o nome que me importa, é o programa: se seu programa envolve austeridade, a gente está diante de um impasse e a gente vai precisar disputar a sociedade. Tirar a extrema direita do poder é o objetivo comum da frente ampla, mas o que vem depois? Discutir o que vem depois é essencial. Não estou dizendo que todo mundo tem de ser socialista para ter frente ampla, mas há pontos que são inegociáveis, que definem o jogo.  

Que mundo você imagina pós-pandemia? Há dois lados. No geral, a gente sai pior, devido aos retrocessos da crise em relação a direitos e ao dia a dia – se ao relaxar regras de isolamento social a primeira coisa que as pessoas querem é se aglomerar no shopping, existe um problema aí, um problema de fundo, o que quer dizer que há muito trabalho pela frente para politizar essas dimensões. Por outro lado, há ganhos: na pandemia, vimos diversas ações e articulação de solidariedade, como mutirões de movimentos sociais, o Bem Viver, o MTST, o MST. O lembrete da solidariedade foi muito potente, daí vem meu otimismo, pois isso abre portas para politização e consciência de classes. Pessimismo da razão e otimismo da vontade, sabe?

Créditos

Imagem principal: Heitor Loureiro

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