“É muito difícil pensar em vencer a LGBTQIA+fobia sem uma reforma de mentalidades”, diz Guilherme Terreri, que dá vida à Rita. “Precisamos visibilizar os corpos e vozes ainda tão invisíveis”
Com uma peruca escura penteada para trás, cílios postiços e uma Barbie fake nas mãos, Rita Von Hunty explica em um vídeo de apenas cinco minutos o que é consciência de classe em seu canal no YouTube “Tempero Drag”. A publicação, que já foi reproduzida mais de 800 mil vezes, traz Roxellycsen, uma jovem cheia de sonhos que acredita ser uma Barbie, mas na verdade é uma boneca de R$ 1,99. “Ela é uma escala, em menor tamanho, de você, pobre de direita ou classe média baixa, que tem certeza de que é rico. E, assim como Roxellycsen não é a Barbie, você não faz parte da elite brasileira”, alfineta Rita em tom professoral em um sofá decorado com almofadas estampadas e uma manta vermelha.
Divertida, performática e didática, Rita é a persona drag criada em 2013 por Guilherme Terreri, 30 anos, para aprofundar e debater temas Brasil afora como capitalismo, gênero, masculinidade tóxica e democracia. Além do canal do YouTube, Rita dá aulas e oficinas em eventos e universidades e apresenta o programa de TV “Drag Me As A Queen”, no canal E!.
“Através da Rita eu posso mobilizar e tocar afetivamente as pessoas. Existe um encantamento artístico, existe catarse, existe humor e existe a magia do encantamento da palavra”, conta Guilherme em conversa com a Tpm por telefone, em seu apartamento na região central de São Paulo. Nascido em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, e formado em teatro, pela UNIRIO, e letras, pela USP, o professor, ator e apresentador lembra que a internet é uma ferramenta, e como qualquer outra, tem um custo, um preço e uma disponibilidade. “Como falar de internet no Brasil? A verdade é que a maioria da população está alheia, porque é uma ferramenta cara”.
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Tpm. Como foi gravar a nova temporada de “Drag Me As A Queen” em plena pandemia, em dezembro?
Todo o estúdio foi adequado, com equipamentos de proteção individual, maquiagem individual... Os nossos corpos mudaram durante a pandemia, literalmente. E o trabalho de uma drag queen é excepcionalmente físico. A gente se mantém em um set com espartilho, enchimento, salto alto e maquiagem durante 12 horas no estúdio. E os nossos corpos não foram preparados ao longo da pandemia para isso. Ficamos com mobilidade e atividades físicas restringidas. Quando nossos corpos estão em alto mar, nosso metabolismo se acelera. Por isso fazer um cruzeiro emagrece. É como se tocasse um alarme avisando que você não está em terra firme. Por isso aeromoças e pilotos se aposentam mais cedo, porque o corpo não sabe que está voando. E quando a gente está trabalhando em um em ambiente em que todo mundo está de máscara, jaleco e luvas entramos nesse estado. Como se estivéssemos sempre na iminência de uma catástrofe sanitária. A estafa psicológica é tremenda. Nosso programa é sobre aproximações, ele une mulheres e drags para conversarem sobre desejo e posição no mundo. É um programa que invariavelmente tem choro, confissões, segredos, camaradagem... E como estabelecer essas relações sem o toque? Na impossibilidade de se tocar, como a gente chora? É uma mudança profunda e os impactos são estrondosos. Ainda não temos o distanciamento adequado para avaliar. Talvez a gente só vá entender a pandemia muito mais pra frente. Estamos em 2021 a gente ainda não é capaz de discorrer sobre junho de 2013.
Quais as consequências desse estado iminente de morte? A iminência da morte também apresenta uma faceta positiva. Ela desarticula o discurso neurótico. Uma das facetas da neurose é postergar, protelar, por acreditar no futuro: “não vou fazer agora porque estou muito ocupado”. Mas o “quando estiver mais tranquilo” nunca chega. Com a possibilidade da morte, podemos criar mecanismos para realizar os próprios desejos, antes que seja tarde demais. E isto pode ser positivo.
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Como está lidando com a pandemia? Tem visto a sua família? Minha mãe faleceu em 2012 e não tive contato com meu pai. Tenho um irmão, mas temos pouco contato. Minha família são meus amigos. Tenho visto a Mari G [sua assessora] com frequência, e ela tem um relacionamento estável com a Ciça, que acabo vendo também. Minha melhor amiga de longa data tem uma avó e uma mãe que são imunossuprimidas. Não a vejo há nem sei quanto tempo. Isso gera uma angústia muito grande, uma sensação de isolamento e de solidão. Estou distante de muitos amigos e ainda não tive tempo de descobrir o que aconteceu e está acontecendo com aqueles que viviam de bilheteria, de captação de recursos pra projetos.
Como era a sua mãe? Minha mãe era uma pessoa muito carismática e com uma inteligência aflorada. Era uma grande comediante, com um senso de humor maravilhoso. Ela era tradutora intérprete e professora de língua e literatura, com interesse especial em fonética e fonologia. Quando era bem pequeno já sonhava em ser professor e brincava de dar aula. Lembro dela me aconselhando: “Nem pensar, meu filho” (risos). Estava morando no Rio quando ela foi diagnosticada com um adenocarcinoma. Vim para São Paulo para acompanhar o tratamento dela. Eu, meu irmão e minha mãe voltamos então a morar juntos nessa época. Tinha 21 anos quando ela morreu.
Como se deu seu processo de luto? Levei três anos para elaborar o luto. Eu só usava cinza e preto e nunca tinha me tocado. Uma amiga que atentou para esse fato. Perdi a vontade de usar cor. Foi um processo muito difícil, eu era muito próximo à minha mãe, a gente tinha uma ligação extrema. A nossa cultura não nos instrumentaliza para lidarmos bem com a morte. Na verdade, a gente lida mal com a educação sentimental como um todo. Somos criados em um sistema que menospreza os sentimentos. A gente vive na barbárie. Somos profundamente carentes de ferramenta para trabalharmos as emoções. Portanto, somos infelizes, violentos e mal resolvidos. Nossas humanidades são sucateadas.
Como começou o interesse pelo teatro? Comecei a estudar teatro na escola por volta da primeira série, em Ribeirão Preto. Com sete anos lembro de encenar “Sonhos de uma Noite de Verão”, “Romeu e Julieta” e “Ali Babá e os 40 Ladrões”. Depois fui para o Rio estudar teatro.
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Quando surgiu a Rita? A Rita é uma persona. E a persona é diferente de um personagem, porque qualquer pessoa pode fazer a Julieta ou Romeu, por exemplo. Mas ninguém vai poder fazer a Rita. Porque não existe um texto da Rita. A única pessoa que sabe como ela opera sou eu. A Rita é uma máscara do Guilherme. Em que momento comecei essa máscara? Quando era um óvulo e fui fecundado. Essa máscara traz passagens de toda minha vida. A Rita é externalizada em 2013, em uma festa de Carnaval na qual todo mundo ia montada numa casa noturna de São Paulo. E, mesmo assim, talvez não seja uma data precisa. Talvez já tivesse feito a Rita no teatro, porque fazia muitas esquetes na época.
Por que a Rita faz tanto sucesso? Porque a gente está falando dentro de uma bolha, que, inclusive, é uma bolha de privilégios. Se a gente for para uma área rural, conservadora e religiosa, talvez a Rita seja abominada. E nem precisa ir tão longe. Basta perguntar para um bolsonarista... Eu não me acho um fenômeno, não me acho amado. Mas também não estou preocupado com isso. Estou preocupado em dar aula.
Mas por que acredita que suas aulas são mais interessantes com a Rita? Através da Rita eu posso mobilizar e tocar mais afetivamente as pessoas. Existe um encantamento artístico, existe catarse, existe humor e existe a magia do encantamento da palavra. A gente nunca vai conseguir falar sobre isso em termos compreensíveis. O [dramaturgo francês] Valère Novarina tem um texto que tenta entender qual é esse encantamento da palavra que atravessa o escuro da sala de espetáculo. Por que a gente escuta uma ópera italiana sem entender italiano e chora? Por que a gente dança e adora uma música árabe sem falar árabe? Porque existe alguma coisa que está além da nossa compreensão imediata e racional do mundo.
Nos últimos anos começamos, mesmo que tardiamente, a debater temas como feminismo, racismo e LGBTQIA+fobia de forma mais ampla. A internet é a grande responsável por democratizar o debate? A internet é uma ferramenta e como qualquer outra tem um custo, um preço e uma disponibilidade. Como falar de internet no Brasil? A verdade é que a maioria da população está alheia. Até tem WhatsApp, mas não tem internet. Porque é uma ferramenta cara. Dentro do cenário de capitalismo tardio, é uma ferramenta inacessível para grande parte da população. Então qual é o papel da internet? Primeiro temos que pensar que ela não tem um papel. Você pode pegar o martelo para pregar um prego ou para abrir a cabeça de um burguês. O uso que eu faço da ferramenta é o de tentar devolver pro Brasil o que o Brasil investiu em mim. Fiz duas universidades públicas e agora devolvo gratuitamente a minha capacidade de ler, articular, analisar e formular.
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Como é a recepção dos internautas e dos seus alunos com a Rita? Recebo infinitamente mais elogios e palavras de incentivos do que críticas. Uma vez fui convidado a dar um curso sobre a história do capitalismo para o sindicato dos bancários no Rio. E uma das pessoas estava com a mãe, uma senhora negra de mais de 70 anos. No intervalo, ela veio até a minha mesa e falou: “Estou feliz porque estou conseguindo entender”. Senti muita vontade de chorar. E falando isso, sinto novamente vontade de chorar. Cenas como essa faz parte do combustível da minha vida.
Por que estamos enfrentando uma onda de conservadorismo hoje? Acho que está todo mundo tentando entender como chegamos até aqui. Na minha visão, o conservadorismo está intimamente ligado com uma despolitização da classe trabalhadora e com uma dilapidação dos direitos dessa classe e seu empobrecimento. A soma desses fatores costuma resultar na ascensão da extrema direita. Quando a classe se despolitiza, empobrece, se enfurece e não consegue se mobilizar em outra direção, se mobiliza em direção ao fascismo, ao grande pai, a ordem, ao grande salvador, ao messias.
Como resistir? Tem muitos jeitos. O nazifascismo opera em muitas frentes. Existe uma frente psíquica, emocional do nazifascismo, que é uma das frentes em que estou lutando. Para estimular a reflexão na contramão dessa política de aniquilação, de genocídio, de embrutecimento. A gente sai dessa onda de conservadorismo através da politização da classe trabalhadora e da melhoria das condições materiais dela. Através da esperança. Cada vez que a gente conseguir enfraquecer sentimentos de xenofobia, de LGBTQIA+fobia, de machismo, que a gente tentar entender coletivamente quem a gente é e qual é o jogo no qual a gente é peça, é mais fácil mobilizar contra quem move as peças em cima da gente.
Muita gente confunde a Rita com uma mulher trans? Qual a diferença para quem ainda não sabe? Precisei fazer um vídeo explicando que não sou mulher. Um amigo me contou que a mãe dele achava que a Rita era uma mulher trans até esse vídeo. Já fiz vários vídeos desmontados. Em 2018, fiz um vídeo sobre masculinidade toxica como Guilherme em meu canal. A drag é uma forma de fazer arte, de pintura, de dança, de escultura. Quando a gente fala sobre trans, a gente fala sobre um lugar no mundo. A drag não é um lugar no mundo, ela é um fazer artístico. Ser trans é ocupar um lugar no mundo.
Em um vídeo em seu Instagram você cita Machado de Assis em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” com os dizeres: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria” para brincar sobre o fato de ter ou não ter filhos. É de fato uma questão para você? Acho que tudo que eu coloco para fora é uma questão. Essa é a parte legal de acompanhar alguém. Foi-se o tempo em que a gente só acompanhava o escritor a cada livro. O modo de interação do público com o artista mudou. Mas ainda não sei se quero nada. Não sei se quero acordar amanhã.
O Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Como frear a violência LGBTQIA+? A Nancy Fraser coloca isso muito bem no livro “Capitalismo em Debate”. É preciso entender que a violência de gênero é organizada pela supremacia da heterocisnormatividade via capitalismo. E os corpos LGBTQIA+ valem menos dento desse sistema. E valem menos simbolicamente, mas também na sua forma mais óbvia, de trabalho vivo, transformado em trabalho morto. É muito difícil pensar em vencer a LGBTQIA+fobia sem uma reforma de mentalidades. Os conservadores usam o biopoder para defender as crianças, o futuro, a família. Mas quais crianças, quais futuro e quais famílias? Recentemente [no último dia 4], uma criança trans de 13 anos foi espancada até a morte no Ceará. Quem estava lá defendendo os direitos dessa criança? Ela teve o direito de definir seu próprio gênero? Ela cresceu em um ambiente que a enxergava como um ser humano ou como um problema? A violência contra nossas identidades e nossos corpos foi construída via processo histórico. O mundo não começa violento contra nós. O cristianismo e outras religiões monoteístas, a divisão do trabalho e reprodutiva, a ideia de família nuclear e do pecado são responsáveis por essa violência. São muitas frentes para se combater. É preciso garantir direitos, educação, emprego, fomentar políticas públicas e sociais de não exclusão de pessoas trans. Precisamos visibilizar os corpos e vozes ainda tão invisíveis.
Créditos
Imagem principal: Jal Vieira (@jalvieira)