Uma espiã contra o nazismo, uma líder budista, uma fugitiva e outras histórias de força feminina que quase foram esquecidas
Caro Paulo,
O que será das mulheres daqui a 20 anos? Achei melhor perguntar para Lili, 72, minha companheira há 46. A resposta foi tão boa que vou deixá-la com vocês. Aí está: minha heroína e suas mulheres inspiradoras.
Meu abraço, Ricardo
Ricardo me perguntou como eu acredito que as mulheres estarão dentro de 20 anos. Difícil dizer, mas acredito que estarão bem de saúde. O avanço da medicina, da ciência e o aumento do acesso à informação devem ajudar. Quanto ao preconceito e à discriminação, não sei se teremos avanço. Espero que sim, e que mulheres e homens tenham a real liberdade de fazer escolhas.
Li muitos livros sobre mulheres que são para mim heroínas, muitas vezes desconhecidas para a maioria, mas que me impressionam pela força em suas crenças, coragem, determinação para seguir ideais, paixão, justiça e sobrevivência. Elas são muitas, algumas de 200 anos atrás. Suas vidas, porém, continuarão a nos inspirar por mais dois séculos. A seguir, lembro algumas cujas histórias me tocaram.
Maria Quitéria de Jesus Medeiros (1792-1853)
Baiana de Feira de Santana, ela foi a primeira mulher a integrar o exército, motivada pelo desejo de lutar na guerra pela independência brasileira como parte do batalhão Voluntários Príncipe Dom Pedro. Maltratada em casa pela madrasta, ela decide contrariar a vontade de seu pai e fugir para realizar seu sonho. Corta os cabelos, veste roupas masculinas e se torna, em 1882, o soldado Medeiros. Excelente combatente, seguiu no exército mesmo depois de ser descoberta, mas com uma farda diferente, desenhada por ela com um saiote. Foi condecorada com a Ordem Imperial do Cruzeiro do Sul, honraria que recebeu das mãos do próprio dom Pedro.
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Virginia Hall (1906-1982)
Americana de Baltimore, nasceu em uma família rica, com prestígio e contatos no governo, e desejava trabalhar na diplomacia, o que consegue em 1931, quando muda para a Polônia para ser assistente na embaixada americana. Mas a carreira foi interrompida por um acidente que lhe causou a amputação de uma perna – o serviço diplomático não aceitava pessoas com este “defeito”, como lhe disseram. Em Paris, quando começa a Segunda Guerra, ela se voluntaria para o serviço de ambulância, mas, durante o conflito, entra para o serviço secreto e começa a atuar como espiã para Inglaterra, França e EUA, entrando em territórios ocupados por nazistas sob disfarce, escapando da morte várias vezes. A expertise adquirida como espiã faz com que ela se torne consultora de uma divisão especial da CIA após a guerra, além de receber honrarias dos três países pelos quais atuou. É até hoje uma mulher incomum, cuja história foi contada em L’espionne, de Vincent Nouzille.
Caroline Ferriday (1902-1990)
Americana de Connecticut e também de uma família rica, aristocrática e liberal, se muda bem jovem para Nova York para trabalhar no consulado francês e na Broadway (adorava musicais, era atriz também). Quando a Segunda Guerra se inicia, seu trabalho passa a ser conseguir que franceses, especialmente judeus, deixem seu país, ocupado pelos alemães, para o que usa todos os recursos que encontra, inclusive o próprio dinheiro. Nesse processo, descobre a existência do campo de concentração Ravensbrück, só para mulheres, que eram chamadas de rabbits e submetidas a experiências cruéis, tratadas como cobaia. Com o fim da guerra, ela usa todos os seus recursos para levar as sobreviventes do campo aos EUA para tratá-las nos melhores hospitais do país. Sua luta permaneceu esquecida pela história até o lançamento do livro Mulheres sem nome, de Martha Hall Relly.
Mridula Sarabhai (1911-1974)
Nascida na Índia numa família da indústria têxtil, tem contato ainda bem jovem com as ações de Gandhi. Se apaixona por suas causas e se envolve não somente no movimento de desobediência civil, mas também em todas as causas dos direitos da mulher, militando por liberdade e igualdade. Sobre ela, Gandhi dizia que, se tivesse cem Mridulas, ele faria uma revolução vitoriosa. Sua liderança, coragem, audácia e enfrentamento a levaram para a prisão inúmeras vezes, o que não a impediu de ser uma ativa líder no Congresso. Quando se desiludiu e se desligou da vida política, passou a se dedicar exclusivamente a iniciativas ativistas, como o Comitê de Mulheres para Economia Planejada. Mais uma mulher que ajudou a moldar um novo mundo com coragem, história bem contada em Rebel With a Cause, de Aparna Basu.
Alexandra David Neel (1868-1969)
A parisiense conta em sua autobiografia, My Journey to Lhasa, que pegou de seu pai, filósofo e professor de ideias avançadas para época, o gosto pela leitura, filosofia, religião e esoterismo. Sua mãe, católica fervorosa, queria lhe dar uma educação tradicional, o que nunca deu certo. Alexandra tinha um gosto por aventuras e pela militância. Participou de grupos feministas e acreditava que a emancipação da mulher tinha que ser econômica. Seu desejo era ir para a Ásia e estudar budismo. Gostava de isolamento. Ainda muito jovem, pratica meditação, ioga e jejum, algo raro na Europa. Com 36 anos se casa e em seguida parte para a Índia, o que seria uma viagem curta, mas só retorna 14 anos depois. Em 1924, quando a entrada no Tibete era proibida para estrangeiros, Alexandra vai a pé de Sikkim a Lhasa, passando por todo tipo de perigo e privação; se inicia no mais profundo estudo do budismo tibetano e torna-se lama. Foi uma mulher de coragem e ousadia não para socorrer ou resgatar alguém em perigo, mas para seguir seu sonho, o que acreditava ser sua vida em plenitude.
Luong Ung (1970)
Do Camboja e radicada nos EUA, escreveu um livro sobre suas memórias e a fuga de sua terra natal, tomada pelo Khmer Vermelho quando ela tinha 6 anos. Seu pai era alto funcionário do governo anterior e sua família perdeu tudo. Viveram se escondendo em pequenos vilarejos, até que decidiram se separar como uma estratégia para sobreviver. Assim, aos 10 anos, fica por conta própria junto com seu irmão, de 14. Sua capacidade de sobreviver a todo tipo de privação e ameaça, fome, medo, frio era sem limites, uma determinação surpreendente para uma menina daquela idade. Quando consegue fugir, ela vai para o Vietnã e, de lá, para a Tailândia, onde uma organização para refugiados consegue uma família dos EUA para adotá-la. Lá, vence clima, língua, surtos de medo, pesadelos e a saudade da família. E no último dia 18 de fevereiro esteve com Angelina Jolie em Londres, onde o filme sobre sua história – baseado em sua autobiografia, First They Killed My Father – foi indicado ao Bafta 2018 de melhor longa de língua estrangeira. É ativista do Landmine Free World – o Camboja é um dos países com maior número de mutilados por minas terrestres
Créditos
Imagem principal: Goia Mujali
Obra de Goia Mujali - Looked closer, noticed all little differences 250 x 200 cm Serigrafia em tela, 2017