Rebeldes com causa (e muita coragem)

por Juliana Resende

Suffragette escancara o custo das conquistas femininas, como o direito ao voto, e reascende faísca para o que ainda precisa vir

Londres, 7 de outubro, é dia de mulheres nas ruas. Não que os outros dias todos não sejam. Explicamos melhor: na terra da Rainha, integrantes da ONG Sisters Uncut gritam coisas como "dead women cannot vote". Parecem destemidas e deixam o circo de mídia, público e celebridades pegando fogo em Leicester Square, no coração do West End londrino, para a première do filme Suffragette, sobre a luta de mulheres britânicas no início do século 20 pelo direito ao voto.

O tapete vermelho é desenrolado em frente ao Odeon, onde será exibido o filme estrelado por Meryl Streep, Carey Mulligan e Helena Bonham Carter, que abre o 59o. BFI London Film Festival.

A polícia se aproxima e os ânimos se acirram. Os seguranças do evento tentam dispersar as Sisters Uncut, que invadem o tapete vermelho. As celebridades ainda não chegaram, portanto os holofotes estão nelas, nas S.U. Elas protestam contra os cortes de verba do governo conservador de David Cameron (reflexo da tal da austeridade) para trabalhos sociais contra a violência doméstica que atinge, adivinhe, mulheres - de todas as classes sociais, níveis de escolaridade e backgrounds raciais.

Sim, isso também existe no Reino Unido e estatísticas dizem que duas mulheres a cada semana são assassinadas no país, segundo o database online Femicide Sensus, da Womans Aid.

Momento perfeito

Para Helena Bonhan Carter, "o protesto foi perfeito para ocasião e tem tudo a ver com o propósito de Suffragette: mostrar que a vulnerabilidade das mulheres ainda é uma realidade, mesmo após as conquistas mostradas no filme". Após assisti-lo, é possível compreender porque está rolando tanto barulho em torno do longa - um dos lançamentos mais aguardados de 2015.

Trata-se de um fortíssimo manifesto feminista como não se via desde Thelma & Louise (aliás, Geena Davis também esteve no London Film Festival para falar sobre empoderamento de mulheres na indústria do cinema, causa em que ela milita por meio de seu instituto, o Geena Davis Institute for Gender in Media).

No longa, Meryl Streep é Emmeline Pankhurst, líder do movimento Sufragista - que lutou intensamente pelo direito feminino ao voto entre 1903 e 1917, numa Grã-Bretanha onde mulheres só puderam votar em 1928, dez anos depois do direito ter sido concedido a homens acima dos 30 anos, e mediante a qualificação exigida (ter propriedades era um dos quesitos).

"Acho que a frase 'Deeds Not Words' ['fatos não palavras'], usada por Pankhurst, diz muito sobre o movimento", observa Meryl, que recentemente foi alvo de severas críticas nas redes sociais por usar uma camiseta com outra frase, atribuída sua personagem, 'I'd rather be a rebel than a slave' ['prefiro ser uma rebelde que uma escrava'], considerada racista.

Questionada sobre o que achou da repercussão, Meryl disse esperar que o "negativismo" não contaminasse a discussão sobre a (ausência de) igualdade entre gêneros, "apesar de a questão racial ser igualmente importante", e que seus atos como pessoa "podem falar por si mesmos". A atriz é fundadora da Female Filmakers Initiative, um incentivo à mulheres roteiristas com mais de 40 anos que, segundo ela, "teve tantas inscrições este ano que vai se repetir no próximo, no outro e no seguinte..."

A luta continua

O fato é que as mulheres conhecidas como Suffragettes tiveram de pegar muito mais pesado que seu trabalho extenuante nas fábricas inglesas (onde o abuso sexual e todo tipo de bullying dos patrões homens que tanto chocaram a grã-fina e engajada Emmeline eram regra é não exceção) para encaminhar essa conquista. "Ainda há muito a fazer, mas essas mulheres deram um passo sem volta, desafiando tudo e todos", diz Meryl.

"Precisamos continuar essa caminhada", continua a veterana atriz, com ares de madre superiora, lembrando que apesar dos avanços, como o acesso à educação, o quão insignificante ainda é a presença feminina nas lideranças de todas as instituições, como a indústria do cinema, por exemplo; "A crítica, os festivais e as produções são majoritariamente compostas por homens. Ora, isso reflete no que é efetivamente produzido e tem de mudar!", diz.

Dona de três Oscar, Meryl Streep marca presença no filme de forma incontestável (mesmo aparecendo em somente uma cena) - assim como assume a liderança na coletiva de imprensa do filme no London Film Festival, que parece se transformar a cada segundo numa conferência feminista. Meryl tira e põe os óculos, sóbria e enfática como a própria Emmeline, que usava táticas aprendidas com os russos, como greve de fome na prisão, e fala messianicamente. A roteirista Abi Morgan justifica a rápida aparição de Meryl no filme: "Mas eu já lhe dei Dama de Ferro!", protesta. "Isso não é o bastante?", ironiza.

Dando tudo pela causa 

Em Suffragette, a ideia foi mostrar como o "baixo clero" do movimento fez e aconteceu. "Sabemos que a história é contada pelas classes dominantes. Por isso há tão pouco registro sobre o movimento sufragista feminino", diz a diretora Sarah Gavron. Emmeline se encaixa nessa casta. Vinda de uma família de políticos, que a apresentou à causa do sufrágio feminino aos 14, e tendo estudado em Paris), ela fica em quinto plano em Suffragette. "Quisemos contar a história da militância por meio de uma lavadeira, uma mulher que poderia ser qualquer uma nós", reforça Meryl. Maud é vivida com extrema dedicação por Carey Mulligan. Paga caro mas não arrega nem quando perde o filho para adoção. "Sou de uma geração que não precisou lutar pelos seus direitos pelo menos no Ocidente, mas se tivesse de ir a extremos como Maud não sei se teria coragem", pondera. 

Outra questão levantada na coletiva de imprensa de Suffragette foi se o radicalismo e o sistema de recrutamento das chamadas Suffragettes não seria comparável (e condenável) como o jihadismo terrorista.  Carey Mulligan descarta a comparação e enfatiza que a luta das sugrafistas já rolava há muito tempo antes de elas terem de apelar para medidas como explosões, delinquência e até mesmo a própria morte. Se os fins justificaram os meios? "Sim, pois só assim essas mulheres puderam ser ouvidas", acredita Carey. Talvez valha até mesmo seu primeiro Oscar.

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