Quem é mais iogue?

por Redação
Tpm #75

O que a lagarta chama de fim de mundo, Deus chama de borboleta

Por Patrícia Varella

Eu construí minha vida em cima do que julguei que precisava. Aos 33 anos de idade fui surpreendida pelos acontecimentos dessa mesma vida que eu instiguei buscando a verdade da minha existência que nada depende de nenhuma falsa necessidade. O necessário é viver!

Carro furtado. Ajustes. A vida não pára. Acordo bem mais cedo do que já era cedo e caminho até o ponto de ônibus – que na calada da noite está lotado de trabalhadores honestos. Levam suas humildes marmitas e, sem dúvida, sobreviverão ao dia sem terapia, comida orgânica, ioga ou meditação! E eu, no topo dos meus problemas inventados, observo a simplicidade que carrega uma alegria quase ingênua. Na menor demanda, são extremamente solícitos, como se não conhecessem mau humor ou indisposição. São verdadeiros karma iogues. Fazem o que deve ser feito. Sinto vergonha por já ter sentido preguiça ou mesmo ter perdido a hora para meus afazeres que tinham propostas além da sobrevivência. Quem é mais iogue? A resposta me leva ao divã!

O emprego fixo e convencional deixado para trás e com ele o consumismo de tantas coisas de que jamais realmente precisei. Esse fato estava na minha cara o tempo todo. “Existem coisas que o dinheiro não compra, para todo o resto existe o cartão de crédito”, dizia o comercial, mas eu, teimosa como uma mula, quis pagar por ela, uma a uma! Como não estavam à venda eu jamais as possui. Aliás, nenhuma posse. Foi tudo desejo e vontade efêmera. Uma das escrituras hindus, o Krishna Purana, diz que é possível amaldiçoar alguém dizendo “que todos os teus desejos se realizem”. É justamente isso, segundo o Vedanta, que nos amarra eternamente no mundo: o ímpeto de saciar nossos desejos. E hoje sei o quanto eu mesma me amaldiçoei.

A verdade é que tudo já é meu, nosso. Mas jamais possuído. É solenemente para utilização. Eu teria que conquistar tudo para clamá-lo de meu aproveitamento. Essa conquista era minha de fato, sobre quem intrinsecamente sou. Teria que edificar minha alegria e satisfação em algo duradouro e eterno como a potência da vida que faz rios correrem, estrelas brilharem e humildemente nos mantém vivos. Teria que abandonar meus falsos conceitos da segurança que é ignorante do imprevisível inerente ao cotidiano. Teria que abrir mão das minhas explicações de como o cosmos todo funciona para poder vivê-lo, ainda que sem compreensão. E assim teria que admitir a dura e fascinante realidade que nada entendo da vida e que mesmo assim, em demonstração compassiva, ela me convida a viver a todo instante sem nenhuma alteração de seu curso diante da minha ignorância.


Ganges, Nilo, Himalaia? Não, marginal do Tietê mesmo

Percebo que todos os meus esforços poderiam ser resumidos à meta de totalmente estar presente não em busca de amor, mas em gratidão por todo amor que já foi provido e que só depende de cada um de nós poder senti-lo. A percepção disso é divina, sagrada e imaculada, é capaz de elevação. Como escrito no Mahabharata – épico hindu – “cada ser é uma divindade ainda por nascer”. Mas note que isso afeta só o fenômeno, maya, em que tempo é uma ilusão linear. No absoluto já somos porque derivamos da essência. Em outras escrituras: “Sois luz, andai como filhos da luz”. Ou seja, o “tornar-se” é possível somente no transitório, verbo “estar”. No absoluto o verbo é “ser”. E notem que em nenhum o verbo é “ter”!

Depois de haver estado em cavernas aos pés do Himalaia, em rios como Ganges e o Nilo, mares como o Morto, jejum, oração, peregrinações, pirâmides e vigílias, por fim encontro Deus no acaso. Ele pacientemente espera por mim – e por cada um –, na magnitude de toda sua manifestação enquanto caminho na rua de uma cidade que é lar, fora estatísticas do censo demográfico, de 20 milhões de habitantes. Ando sozinha sem solidão. Meu coração é cheio e livre prisioneiro. No caminho para casa, a surpresa de estonteantes cores de uma borboleta sobre uma folha verdíssima que serve de rede para a beldade. Parecia a primeira vez que via algo assim. Paro por um momento e sorrio emocionada para ela como quem pergunta: “Por onde você esteve?”. E tenho a sensação de que a ex-lagarta, ex-lagarta como eu, me surpreende de novo: “Por onde VOCÊ esteve?”. Não importa. Aqui e agora bastam. Consciência. Se algo, isso seria tudo de que preciso.

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