Três professoras que defendem publicamente a descriminalização do aborto foram desligadas de importantes universidades brasileiras. Corte de custos ou perseguição?
Tpm mergulhou nestas histórias – que incluem bate-boca no Congresso Nacional e levante de alunos – e pergunta: quem sai ganhando quando
o debate é calado?
Em 14 de dezembro de 2015, depois de cinco anos de trabalho e uma condecoração por mérito acadêmico, a professora Soraia da Rosa Mendes, 41 anos, escutou do diretor da Escola de direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) que, devido a uma readequação acadêmica, seus serviços já não eram necessários. A notícia foi recebida por Soraia com pesar, mas não exatamente com surpresa.
Meses antes, a professora e o mesmo diretor haviam tido uma conversa, quando foi questionada sobre sua assinatura – e do grupo de pesquisa na época coordenado por ela – em um manifesto, enviado à Câmara dos Deputados, pela aprovação do Projeto de Lei nº 882/2015, de autoria do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ). Tal projeto prevê a legalização do aborto no Brasil, além de estabelecer políticas públicas no âmbito da saúde sexual e dos direitos reprodutivos. “O diretor disse que o deputado federal Diego Garcia (PHS- PR), integrante da Renovação Carismática Católica, cobrou uma posição da universidade sobre essas assinaturas”, conta.
Professora de direito penal na graduação e autora de obras com foco em questões do gênero feminino – como Criminologia feminista (ed. Saraiva) –, Soraia acredita que é imprescindível não silenciar sobre o tema. “Discussões de direitos humanos e gênero são relegadas na universidade. Espera--se que o aborto seja tratado apenas no âmbito do código penal, você lê a lei existente para os alunos e basta. Aprofundar o debate, ou mesmo falar de reformas na legislação, causa incômodo.”
Como protesto à demissão da professora, estudantes da UCB protocolaram na reitoria uma carta aberta com mais de 500 assinaturas. “A universidade é católica e privada, mas o ensino é laico e submetido à Constituição de nosso país. Queremos ensino, pesquisa e extensão de qualidade”, diz o documento, que gerou repercussão na imprensa local, mas até então segue sem retorno da reitoria.
Segundo Michelle dos Santos, 22 anos, uma das responsáveis pelo texto da carta e na época aluna de Soraia, foi prejudicado também o grupo de pesquisa coordenado pela professora. “Cortaram os recursos. Mas nossos estudos eram sobre mulheres encarceradas e tráfico de drogas, nem sequer pesquisávamos aborto. Ficou claro que a universidade queria atingir a professora.”
Consultada, a Universidade Católica de Brasília informou que o desligamento de Soraia se deu estritamente por “caráter administrativo”. Já o deputado Diego Garcia, através de sua assessoria de imprensa, disse que “em momento algum” questionou a universidade a respeito da assinatura da docente e que não tem relação com a UCB. Ainda, reforçou sua posição: “O Projeto de Lei nº 882/2015 está em dissonância com os direitos humanos e o respeito à vida”. Segundo ele, porém, a professora “assina o documento enquanto pessoa física e sua liberdade de expressão precisa ser respeitada”. Entretanto, a reportagem teve acesso a um e-mail enviado pelo gabinete do deputado à reitoria da UCB no dia 29 de abril, em que questiona a assinatura, no manifesto pró-legalização do aborto, do grupo de pesquisa então coordenado por Soraia: “Esse manifesto teve ciência e anuência desta reitoria?”.
“Ser demitida por razões políticas é das situações mais opressivas que alguém pode passar”
Debora Diniz
“A ação dos parlamentares na autonomia das universidades é assustadora”, comenta Soraia. “Parece que só aconteceu comigo, mas não é assim. Estamos o tempo todo pisando em ovos, e muitos preferem silenciar. Isso, além de limitar a produção docente, cria um mecanismo de terror dentro da academia. A ameaça da demissão passa a ser uma constante. Nenhum dos meus colegas de trabalho se envolveu no meu caso, e não por falta de compaixão, mas pelo medo de serem punidos.”
Caça às bruxas
Não é a primeira vez que a UCB se envolve em uma história que aponta para demissão de professores que sustentam opiniões pró-descriminalização do aborto. Debora Diniz, 45 anos, antropóloga e pesquisadora de bioética, foi demitida da instituição em 2002, segundo ela: “Sem justa causa, em plena metade do semestre e por telefone”. Para a antropóloga, não restam dúvidas: “Fui demitida a pedido da igreja”.
Em 2003, Debora já produzia aquela que se tornaria a mais relevante pesquisa sobre aborto no Brasil, junto à ONG Anis Instituto de Bioética. Trazer o tema para a discussão lhe custou o emprego e uma dificuldade de recolocação na academia. “Afastada da docência, me refugiei nas pesquisas científicas para seguir criando um espaço de resistência. Ser demitida por razões políticas é das situações mais opressivas que alguém pode passar”, diz.
Por conta do ocorrido, a professora foi incluída em uma lista da Associação Americana para o Avanço da Ciência, que todo ano conta histórias de cientistas perseguidos por defenderem princípios polêmicos e caros à sociedade. Hoje, Debora é professora na Universidade de Brasília (UnB) e continua na Anis. Entre seus feitos está a articulação pelo direito ao aborto em casos de anencefalia junto ao Supremo Tribunal Federal, acatada em 2012.
Em relação ao desligamento de Debora, a UCB mantém a mesma resposta dada ao caso de Soraia: “Caráter administrativo”.
Há ainda uma terceira história. Ano passado, a Comissão de Direitos Humanos no Senado organizou uma série de audiências para discutir a legalização do aborto no SUS até a 12ª semana (vale lembrar: na legislação vigente, aborto só não é crime em casos de gravidez decorrente de estupro, risco de vida à mãe e anencefalia. Em qualquer outra situação, a necessidade ou o desejo de interromper uma gestação são ignorados e condenados pelo Estado). No encontro que aconteceu no dia 6 de agosto, a filósofa e escritora Marcia Tiburi, 45 anos, então professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie há oito anos, discorreu sua defesa do direito ao aborto: “Riscamos com o giz da demagogia um círculo cínico em torno do problema do aborto. Julgamentos morais cruéis contra mulheres o transformam em uma metáfora do mal, fazendo funcionar uma máquina destrutiva do reconhecimento do lugar das mulheres, de sua alteridade e da autonomia dos seus corpos e vidas."
Durante a fala de Marcia, o deputado federal Leonardo Quintão (PMDB-MG) questionou a titulação da professora, já que a universidade que ela representava assume um posicionamento religioso contrário ao aborto. Presente no momento em que a filósofa foi questionada, Jean Wyllys se lembra da indignação de Leonardo: “Ele tentou intimidá-la e exigiu que a universidade se posicionasse”. Paciente, Marcia esclareceu: não havia problema em falar de aborto e levar o nome do Mackenzie consigo. Era uma questão de liberdade de expressão. No canal de YouTube da TV Senado é possível assistir sua resposta.
Em uma nota ao Congresso, lida logo após a fala da filósofa, a universidade “reafirma a posição de sua entidade mantenedora, a Igreja Presbiteriana do Brasil, que repudia tanto a legalização do aborto, com exceção do aborto terapêutico, quando não há outro meio de salvar a gestante, quanto o uso de anticoncepcionais abortivos”. Consta ainda que “as posições expostas por seus professores são fruto da liberdade de expressão inerente ao ser humano e à vida intelectual”.
Estado laico
Mesmo aparentemente protegida pela declaração do Mackenzie, Marcia acabou desligada da universidade. “Pelo que soube, a universidade não queria me dispensar porque era uma professora produtiva e, por isso, importante para um curso de pós-graduação, mas a igreja quis minha demissão depois daquela participação na audiência, na qual eu não fui senão por ativismo filosófico e político. Uma coisa não se separa da outra”, diz.
Sobre a demissão e todo seu contexto, o Mackenzie respondeu por e-mail: “[ela] ocorreu em dezembro de 2015, período no qual promovemos regularmente ajustes em nossa estrutura de pessoal”. Já o deputado Leonardo Quintão preferiu não se pronunciar.
“Não há pessoa ou instituição, seja ela política, militar, religiosa ou mercadológica, que possa impor à universidade qualquer limite ao exercício da crítica ”
Alípio Casali
De acordo com a Constituição Federal, as universidades privadas brasileiras podem ser de natureza confessional, ou seja, podem seguir crenças religiosas ou estar ligadas a igrejas. É o caso da Presbiteriana Mackenzie e da Católica de Brasília. Contudo, elas devem se submeter aos mesmos critérios exigidos para as demais instituições: liberdade de ensinar, pesquisar, divulgar o pensamento e o pluralismo de ideias. Para Alípio Casali, que foi vice-reitor da PUC-SP, “a universidade é, por excelência, o lugar da liberdade. Não há pessoa ou instituição, seja ela política, militar, religiosa ou mercadológica, que possa impor a ela qualquer limite ao exercício da crítica. A hipótese do impedimento da manifestação de valor de um professor é inaceitável”, diz o pós-doutor em Educação e professor do departamento de Fundamento da Educação na USP.
Não se trata, portanto, de uma questão isolada nesta ou naquela instituição, nem de uma divergência de crenças entre um professor e uma universidade. A questão é outra. O mal-estar vem da percepção de que uma articulação política no nível federal trabalha para calar um debate. A força de articulação de políticos religiosos dentro do Congresso Nacional é inquestionável. Na atual legislatura, a Frente Parlamentar Evangélica é formada por 199 signatários (um terço do total de 594 parlamentares). Um cenário hostil quando o assunto é a descriminalização do aborto, e que mostra ameaças de retrocesso em relação às conquistas recentes.
O Mapa do Fundamentalismo no Congresso Nacional, feito em 2013 pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), traz mais de 30 proposições legislativas em curso com a intenção de criminalizar qualquer tipo de aborto. “De todas as pautas progressistas, esta é a mais difícil de ser tocada”, explica Jean Wyllys. “Mas é uma questão de saúde pública, de liberdade individual e equidade de gênero. Precisa ser debatida. Essas professoras estão pagando o preço por não terem ficado em silêncio.”
“Instituições de ensino superior não devem punir professores que discutem com argumentos algo que está sendo debatido na sociedade”
Para o ex-ministro da educação e professor de ética e filosofia política na USP Renato Janine Ribeiro, “se os desligamentos se deram pelos motivos afirmados, então é lamentável. A pressão de políticos sobre universidades é inadmissível. Instituições de ensino superior não devem punir professores que discutem com argumentos algo que está sendo debatido na sociedade”.
Créditos
FIRMORAMA