Em referendo histórico, irlandeses votam a favor da legalização do aborto; a pesquisadora Débora Diniz explica o que temos a aprender com eles
A Irlanda olhou para as mulheres: o povo votou por descriminalizar o aborto. Caberá a cada mulher do país, de maioria católica, decidir quando e por quais razões fará um aborto. O que mudou com a nova lei? Nenhuma mulher mais será punida ou terá que atravessar fronteiras para ter acesso a um serviço de saúde seguro.
A mudança não é pouca coisa. A Irlanda era um dos poucos países europeus a insistir em mandar mulheres para a cadeia por um aborto, mesmo em caso de estupro. A justificativa era a lei penal do país, inspirada na forte tradição católica do povo. É aí que Brasil e Irlanda se parecem: somos também um país de maioria católica e evangélica que ameaça as mulheres com a morte ou a prisão se fizerem aborto.
E quem é a mulher que faz aborto no Brasil? Segundo a Pesquisa Nacional sobre o tema de 2016, ela é católica ou evangélica, jovem e com filhos. É o perfil comum da mulher brasileira. Uma em cada cinco mulheres de 40 anos já fez um aborto – todas nós conhecemos cinco amigas, uma delas é a nossa estatística escondida. As histórias são de solidão, pois elas passaram a temer até os médicos. Não são raros os episódios de mulheres denunciadas à polícia ainda no hospital: algemadas, são arrastadas às delegacias para prestar depoimento. E o estigma do aborto só aumenta no país.
É a hora de o Brasil olhar para a Irlanda e entender duas coisas. A primeira é que não ofende a religião de um povo descriminalizar o aborto. Uma mulher católica aborta assim como uma outra mulher sem religião pode não abortar. A escolha é íntima e por isso devem importar menos as doutrinas de cada igreja. O importante a essa conversa é como fazer para que mulheres não morram ou adoeçam. É isso que a lei hoje faz no país.
A segunda é que o Brasil também tem as condições para transformar a atrasada lei penal de 1940 em um exemplo para a América Latina: o Supremo Tribunal Federal tem uma ação de aborto para ser julgada, e as audiências públicas estão previstas para junho - um dos momentos mais importantes para debate sobre o tema na corte. É urgente seguir o exemplo da Irlanda e entender que saúde e religião não se misturam para garantir o direito das mulheres à vida.
*Debora Diniz é professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasilia e pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética
Créditos
Imagem principal: REUTERS/Clodagh Kilcoyne