Depois de cinco anos de pesquisa, nasce O Aborto dos Outros, primeiro longa da cineasta Carla Gallo
Se dona Izabel tivesse seguido o conselho que a médica lhe deu quando ela engravidou do namorado, a cineasta Carla Gallo [na foto acima] não existiria. Mas, protestante fervorosa, a jovem de 21 anos nem considerou a hipótese de abortar a primeira dos cinco filhos. E contou o episódio à filha ainda adolescente – hoje uma mulher de 35 anos, que passou cinco preparando o primeiro longa de sua carreira. Formada pela Escola de Artes Dramáticas (ECA/USP) e diretora de médias-metragens como Ruas (2007), Tom Zé ou Quem Irá Colocar uma Dinamite na Cabeça do Século? (2000), entre outros, Carla lança o documentário O Aborto dos Outros, no dia 5 de setembro, em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Na vida real, é casada há sete anos e está louca para ter filhos. Na telona, ela mergulha num universo que só conhece de fora e passa, por exemplo, cinco dias dentro do quarto de um hospital público em São Paulo, esperando um aborto acontecer. A protagonista é uma garota de 13 anos que fora estuprada. Além de casos como esse, autorizados pela lei, a cineasta apresenta histórias clandestinas. E, apesar do tema pesado e cheio de controvérsias, o filme não tem cenas chocantes. Mas fica clara a posição da diretora: de defesa da descriminalização do aborto. Inclusive porque ela acredita que, se a legalização vier junto com medidas de orientação e distribuição de anticoncepcionais, reduzirá o número de abortos realizados no país – hoje, acontecem mais de 1 milhão de interrupções por ano, o que significa uma a cada quatro gestações. No filme, Carla fala do aborto dos outros. Para a Tpm, ela conta a própria história, como você confere a seguir.
Tpm. Você já fez aborto?
Nunca fiz e, pelo que me conheço, acredito que não faria. Pelo que já vivi, pelo que quero pra mim, pela educação que tive. E quero muito ter um filho. Minha família é muito maternal. Minha avó tem dez filhos, minha mãe tem cinco. Mas eu sempre desconfiei desse arquétipo da maternidade, essa coisa plana e calma e só isso. Para mim, o aborto é o lado sombrio da maternidade.
Como surgiu a idéia do documentário?
Eu cresci muito interessada no tema. Porque minha mãe, quando engravidou de mim, era supersem grana. Ela foi num posto de saúde e a médica indicou que ela fizesse um aborto. Mas ela jamais faria. E me contou isso no início da adolescência. Até que, há alguns anos, li o livro A Grande Mãe, de Erich Neumann, que tem vários arquétipos de maternidade e, entre elas, existe o arquétipo negativo, a mãe devoradora. Juntada a curiosidade com a base que esse livro me deu, resolvi desmistificar essa imagem da maternidade idealizada.
Como foram os cinco anos de pesquisa e os cinco meses de filmagem?
Comecei pelo mais formal, ouvindo autoridades de várias religiões. Até que um senhor falou que uma mulher que faz um aborto é muito mais criminosa que Hitler, que exterminou 6 milhões de judeus. Quando ouvi essa declaração absurda, desmoronou a possibilidade de diálogo com a religião. Aí entrei num hospital público e comecei a acompanhar as mulheres que fazem o aborto previsto por lei, que é quando a causa é estupro ou a gestante tem risco de vida. A idéia era falar só desse tipo de interrupção, mas na primeira semana de filmagem vi que eles são um número muito reduzido dos abortos realizados no Brasil, então resolvi ir atrás do aborto inseguro.
Você chegou a ir a clínicas clandestinas?
Tentei, mas não fui. Porque envolvem muitos problemas. Imagina você documentar uma situação que é criminosa. Mas é um crime organizado. Quando você aperta o cinto, todo mundo conhece algum médico que faz.
O filme deixa claro que você acredita na legalização do aborto. O que te levou a defender essa posição?
Tem uma personagem que fez cinco abortos. É uma mulher que não sabia nem do uso da camisinha. Do ponto de vista psicológico, ela tem uma baixa auto-estima, então se envolve com homens, não se protege, acredita no que eles dizem. Uma mulher que passa por cinco abortos se violenta profundamente. Ela é um conjunto de deficiências: do Estado, porque não deu informação, dela mesma, porque não consegue exigir proteção do parceiro, e de conhecimento, porque não conhecia os métodos contraceptivos e, quando conheceu, falou que a pílula a deixava gorda e nervosa. Nossa vaidade feminina pode criar problemas. Se o aborto fosse legalizado, essa mulher teria feito a primeira vez num hospital e teria sido cuidada e orientada para não passar por outros.
E aquela garota de 13 anos que foi estuprada...
Foi muito forte para mim. Nós ficávamos no quarto, eu e minha assistente de direção. Nós que fazíamos a câmera o tempo todo. E éramos quatro mulheres, cinco dias, dentro de um quarto, esperando um aborto acontecer. De uma menina que tinha sido estuprada. Vivemos muitos sentimentos profundos lá, que reverberavam em mim.
Qual o propósito do filme?
Eu queria fazer um filme sobre aborto através da perspectiva feminina. Não é um filme panfletário, apesar de ser claro no que acredita e defende. Mas, para além da legalização, eu pretendo discutir e mostrar os conflitos femininos num país que trata a mulher como criminosa quando ela faz essa opção. Porque “ser contra ou a favor ao aborto” é uma pergunta que não existe. É uma má colocação gramatical. A pergunta correta seria: “Você é contra ou a favor da legalização do aborto?”. Todos somos contra o aborto. Os religiosos mais ortodoxos e o movimento de mulheres mais radical, querem, na verdade, a mesma coisa: que as mulheres tenham seus direitos reprodutivos assegurados e façam menos aborto.