por: Buscofem

O corpo como instrumento

apresentado por Buscofem

Após um aborto que acarretou sérios desconfortos menstruais, Letícia Bhakti encontrou no tantra uma chance de se reconectar com seu corpo e seus ciclos

Depois de perder um bebê, Letícia Bhakti teve de lidar com dores insuportáveis em seu ciclo menstrual. As cólicas não permitiam que ela levantasse da cama e, nesse processo de vivenciar seu corpo pedindo por ajuda, ela percebeu que havia se afastado de si mesma. A terapeuta tântrica e naturopata já tinha duas filhas, que hoje têm 10 e 12 anos. Era sua terceira gravidez. Após o aborto espontâneo, Letícia se desconectou completamente de sua sexualidade – item fundamental e muito bem resolvido até então.

Antes de ser terapeuta, Letícia era escritora de quadrinhos. Com o tempo, chegou em um ponto de sua carreira que ela não se identificava mais com o que fazia diariamente e, por isso, atravessou um forte processo de depressão. Em busca de curas naturais, ela começou um trabalho terapêutico alternativo e se inspirou para estudar aquilo que a estava ajudando a sair da depressão. Se tornou, assim, naturopata e doula, profissional que acompanha as mães durante a gestação e também no momento do parto.

A formação como doula permitiu que Letícia fizesse seu segundo parto sozinha, com o acompanhamento de uma obstetra, após uma primeira gestação conturbada pela toxoplasmose. Não permitiu, porém, que se tornasse fácil o processo de ter uma gravidez interrompida no meio. “Meu corpo estava completamente anestesiado depois de passar pelo aborto. Fiquei extremamente abalada. Minha menstruação ou não vinha, ou era muito dolorida e forte. Aquilo estava me afetando em todos os campos da minha vida. Foi quando entrei no tantra para me curar”, conta.

A terapia tântrica é uma prática comportamental e corporal que procura desenvolver os aspectos físicos, mentais e espirituais das pessoas através de técnicas sensoriais. De origem indiana, foi difundida mundo afora com base em seus três pilares: ritual, meditação e disciplina. Várias vertentes foram criadas em diferentes regiões para que as culturas pudessem se adequar ao tantra sem perder sua essência. No Brasil, ainda existem muitas pessoas que acreditam que a técnica seja apenas sexual ou sem um fim terapêutico. No entanto, Letícia afirma que não é bem assim.

“Mesmo tendo uma relação saudável com o sexo, no tantra notei que eu tinha muita coisa para descobrir, conhecia apenas o superficial”
Letícia Bhakti

“O tantra mudou a minha vida. Quando comecei essa jornada, não era moda. Fui entender que não era apenas sobre sexo quando me abri para esse processo. A terapia tântrica do Brasil está muito alinhada com a do taoísmo, da Tailândia, o que faz com que trabalhemos muito a sexualidade. De fato o brasileiro é, sim, muito sensual. Mas não é nada sexual. A gente não sabe nada sobre nosso corpo ou sobre o corpo do outro [risos]. Mesmo tendo uma relação saudável com o sexo, no tantra notei que eu tinha muita coisa para descobrir, conhecia apenas o superficial. Esse aprofundamento fez toda diferença.”

Antes da tempestade

Quando ainda não havia passado pelo processo do aborto, a cólica era apenas um sinal de que o ciclo menstrual da terapeuta estava chegando e não incomodava tanto. Porém, as lembranças de Letícia sobre sua primeira menstruação não são tão boas assim. “Foi horrível! Eu estava na praia com meus avós, era o último dia do ano. Comecei a me sentir desconfortável, com muito sono e, quando fui ao banheiro, notei que estava sangrando. Chamei a minha avó e a primeira coisa que ela disse foi: ‘Agora acabou’. Mas acabou o quê? Ela me entregou um absorvente e não falou mais comigo sobre aquilo”, lembra.

Sem saber usar aquele artefato até então inútil, Letícia recorda que gastou cinco pacotes de absorvente em três dias. A sensação era a de que sua infância havia acabado, ainda que não conseguisse se enquadrar como uma adolescente, com apenas 13 anos. Ao contrário do que sua avó disse, aquela jornada enquanto mulher estava apenas começando. Ao chegar em casa, foi possível receber um acolhimento necessário e de maneira leve, descontraída. “Minha mãe adorava menstruar e quando contei para ela, o que ouvi foi que minha menstruação seria minha melhor amiga para sempre. Mais do que isso, uma garantia de que não estava grávida”, recorda.

A terapeuta acredita que é natural essa falta de acolhimento com a menstruação desde cedo. Para ela, se o fato fosse visto como uma parte essencial do mês, um momento para o corpo descansar, as mulheres reconheceriam uma força poderosa em si mesmas. É isso que ela tenta passar para a própria filha de 12 anos, que menstruou há pouco tempo. “Ela me ligou e disse: ‘Acho que menstruei’. Eu peguei o primeiro carro e fui correndo perguntar se estava tudo bem. Ela me interrompeu na hora dizendo que estava tudo ótimo [risos].” Acostumada a ir aos cursos sobre o feminino dados por sua mãe, a jovem já sabia muito bem o que esperar desse momento. Juntas, fizeram um bolo, em um verdadeiro ritual de passagem. “Quem decide sobre o corpo dela, agora, é ela”, pontua Letícia.

Outras formas de acolhimento

Ao longo de sua jornada como terapeuta tântrica, Letícia Bhakti ficou frente a frente com centenas de mulheres que buscavam ajuda para se conectarem com sua sexualidade. Atrás dessa queixa, ela pode observar que existiam outros fatores em negação, como relacionamentos abusivos, uma falta de identificação com o ser mulher e dificuldade para relaxar. “É importante tirar esse véu. Quando a mulher relaxa, ela sente a impressão de que está faltando alguma coisa. Falta mesmo! Falta trabalhar o autoacolhimento, o autoamor. Relaxar é olhar para si mesma. Muitas mulheres conseguem entender o que desejam nesse processo”, relata.

Letícia atinge com seu trabalho mulheres com problemas menstruais, gestacionais, mães solo e aquelas com histórico de abuso. Em todas as histórias que já presenciou, tirou a conclusão de que uma mulher forte é aquela que vive a própria verdade, que entende os próprios erros e acertos. Que consegue, apesar de tudo, buscar uma vida melhor. Entender os próprios ciclos faz parte disso e foi algo que o tantra ensinou muito bem à terapeuta. “A primeira coisa que eu acessei no tantra foi o tempo. Parei de viver no futuro, parei de viver no passado. Comecei a viver no presente. Hoje eu sei quando estou fértil ou quando vou menstruar. Quando estou mais criativa e mais introspectiva. Quando você se torna cíclica, esses processos param de ser uma ilusão e você traz para o consciente.”

“Por que negar a nossa natureza? Ela nos preenche de força. Menstruar, inclusive, é como voltar para a casa”
Letícia Bhakti

Olhar para si mesma talvez seja a chave que Letícia encontrou para transformar suas dores físicas e emocionais em uma grande potência. Hoje, aos 33 anos, nove anos depois de passar pelo aborto, ela busca ser mais gentil consigo mesma e crê ser mais do que importante falar sobre isso. “Você aprende a perdoar as mulheres ao seu redor. Tendo compaixão consigo mesma, você consegue ter compaixão com todos. O primeiro contato com essa potência feminina talvez seja na menstruação. Por que negar a nossa natureza? Ela nos preenche de força. Menstruar, inclusive, é como voltar para a casa”, conclui.

 

Créditos

Texto: Camila Eiroa

fechar