por Milly Lacombe
Tpm #98

Não deve ser fácil essa obsessão materna para tentar evitar o sofrimento do filho

Chegamos ao hospital em cima da hora graças ao infernal trânsito de São Paulo que, feito um filme de David Lynch, não cansa de surpreender de forma bizarra. Quando abandonamos o carro no estacionamento abarrotado, tivemos que sair correndo – já passava da hora marcada para o nascimento de Larissa e Carolina, filhas de meu irmão.

Ao chegarmos, esbaforidas, meu amor e eu, encontramos minha mãe com duas sacolinhas na mão.

– O que tem aí?

– Pão de queijo, croissant, bolo de chocolate e tortinhas de limão.

– Para quantas pessoas? – perguntei, para cutucar.

– Para todas que vierem – disse a matriarca, mais agitada do que o normal, a fim de justificar o grande evento que seria o nascimento das descendentes do homem perfeito – meu irmão.

Minha mãe tem quatro filhos e sete netos, cortesia de minhas duas irmãs parideiras. Era de supor que estivesse absolutamente familiarizada com a chegada ao mundo de mais duas almas e não precisasse se comportar como uma estudante em dia de vestibular.

Esbocei um comentário sarcástico que deixasse claro o absurdo da manifestação pela preferência dada ao nascimento das filhas de meu irmão, mas meu objeto de obsessão, com o olhar, ordenou que eu engolisse imediatamente, me fazendo lembrar de todo o risco que aquela gravidez ainda representava.

Foram quatro meses de hospital para minha cunhada, incluindo dias na UTI, entubações, risco de morte e, agora, o parto marcado de forma prematura. Larissa e Carolina viriam ao mundo muito antes da hora, e a chance de uma complicação ainda era real.

Esperando na janela

Quando eu fazia essas contas, a enfermeira apareceu para dizer que minha cunhada já tinha sido levada à sala de parto e que o nascimento poderia ser visto na janela 3. Armada das sacolinhas de quitutes, minha mãe rompeu em direção ao local e se colocou de pé diante da janela sem ter tempo para ouvir a mesma enfermeira contar que o parto ainda levaria algum tempo.

Adriana, a irmã mais corajosa, disse então à matriarca que a janela só seria aberta depois que o médico autorizasse, e que não ia adiantar ficar ali de pé, como uma groupie em show do U2, por tanto tempo.

Nessa hora chegou Bete, a melhor amiga de minha mãe. Agora, somados à família de minha cunhada, éramos um grupo enorme e barulhento à espera do nascimento das duas meninas. E minha mãe, fora de giro, a se movimentar pelo corredor.

– Adele, senta aqui – ordenou Bete à minha mãe com a determinação que só as amizades verdadeiras oferecem.

– Quer um? – disse minha mãe à amiga abrindo um dos saquinhos debaixo do queixo dela e sentando-se a seu lado.

– Não, pela milionésima vez – respondeu Bete sem levantar a cabeça de sua revistinha de palavras cruzadas.

Minha mãe então sentou e começou a bater os pés no chão alternadamente, como quem quer ir ao banheiro, mas não pode.

Antes que eu pudesse mandar ela parar, Bete disse, lançando um ligeiro olhar para o pé de minha mãe:

– Bonitinho esse seu sapato.

– Gostou? Eu adoro, mas ele come minha meia, - disse a matriarca virando a cabeça para baixo a fim de analisar melhor o sapato.

– Deve estar pequeno – concluiu Bete, ainda sem levantar a cabeça.

– Acho que está grande – respondeu minha mãe.

– Ou isso – disse Bete.

– Gosta da cor?

– Muito. Vai com qualquer coisa

– Mas suja com facilidade.

Eu, atenta àquele dueto que mantinha minha mãe sedada, só saí do foco quando minha irmã pediu silêncio.

– O quê? O quê? – perguntava minha mãe enquanto se dirigia apressada à janela.

– Eu ouvi alguma coisa parecida com um choro.

Em segundos, minha mãe já estava novamente com um ouvido colado ao vidro. Quando observei suas mãos, agarradas ao parapeito da janela, notei como tremiam. Para o bom observador, a tensão dela podia ser facilmente vista pelo reflexo no vidro. Pela primeira vez naquela manhã pude ter alguma noção do que minha mãe estava sentindo.

Larissa e Carolina

Quando a primeira filha de meu irmão, Isabela, nasceu, com cinco meses, e não sobreviveu mais do que algumas horas, o menino mergulhou em um oceano de dor do qual só o tempo conseguiu resgatá-lo. Tudo o que minha mãe não queria era vê-lo enfrentar uma situação de dor visceral como naquela outra vez. Por ele, e para que ele não sofresse mais, de preferência nunca mais na vida, as mãos de minha mãe tremiam tanto. Não deve ser muito fácil essa obsessão materna de passar a vida tentando evitar o sofrimento do descendente para descobrir que a maioria das dores é pessoal e intransferível.

Ontem à tarde liguei para minha mãe para saber como ela estava.

– Não posso falar agora – disse ela apressadamente.

– O que houve? – perguntei, apreensiva.

– Estou com a Larissa no colo enquanto a Fabiana amamenta a Carolina. Te ligo depois. E desligou.

Era uma manhã de quarta-feira ensolarada e extremamente quente quando meu irmão apareceu segurando uma das filhas no vidro em que minha mãe estava colada havia algumas horas. Larissa e Carolina, perfeitamente saudáveis, nasceram no dia 5 de março, às 11 e meia da manhã. A família passa bem, apesar do fato de minha mãe não sair da casa de meu irmão desde o dia em que elas chegaram.


A carioca Milly Lacombe, 42 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@uol.com.br

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