Dei um beijo na boca do medo

por Maria Bopp

Estreando a segunda temporada como Bruna Surfistinha, Maria Bopp reflete sobre os medos que a personagem lhe ajudou a superar

"Quem quer ser a Julieta?" Meus olhos brilham, sinto um frio na barriga e, em silêncio, com a mão direita querendo levantar embaixo da carteira, penso que essa pode ser a minha primeira oportunidade de ser atriz. (Porque, OK, vestir as roupas da minha bisavó Gilda, colocar um travesseiro nas costas e imitar seus trejeitos não deixava de ser uma baita atuação.) Mas agora era o primeiro dia na oficina de artes cênicas da 7ª série, a montagem de Romeu e Julieta. Eu teria um roteiro. Um palco. Uma plateia além da minha família coruja. Após cinco segundos de uma hesitação covarde, uma aluna mais velha, linda e confiante grita: “Eu!”. Tudo bem, eu nem queria mesmo... Fico com o papel do boticário. Sim, sou eu que vou dar o veneno que mata o seu amor, Julieta.

Minha segunda chance de ser protagonista aconteceu dez anos depois, em 2015. Recebi uma mensagem no meio da tarde, e era o [diretor e preparador de atores] Tomas Rezende me convocando pra um teste. Não era Shakespeare, e sim Bruna Surfistinha. Ela seria mote de um seriado do FOX Premium. Aquele frio na barriga voltou.

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É certo que, nesse intervalo de tempo, eu tinha flertado com a atuação algumas vezes: uma figuração num filme, uma participação num curta e até um delicioso papel de coadjuvante na série Oscar Freire 279 (2011), do Multishow. Nesse último tive o prazer de ser dirigida pela Márcia Faria, a primeira pessoa a dizer que eu tinha talento como atriz. Márcia também seria a diretora de Me Chama de Bruna.

Era uma oportunidade única, e eu não tinha nada a perder. Mas, apesar das ótimas lembranças de minhas experiências em frente às câmeras, naquele momento eu orbitava por detrás delas. Tinha me formado em audiovisual fazia três anos e acabado de fechar o maior projeto da minha recém-nascida carreira como continuísta – escolha que fiz como parte da ambição de um dia me tornar diretora.

Passava meus dias no set de filmagem grudada a um computador, um cronômetro e uma câmera, concentrada nos mínimos detalhes dos cenários, dos figurinos e dos gestos deles, os atores. Como eu poderia estar em seu lugar? Não tenho formação em teatro, tampouco anos de experiência. Jamais passaria no teste. “Obrigada pelo convite, mas…” “Maria, enfrenta seu medo”, Tom me atropelou com o incentivo de que eu precisava. Fui e passei. (Obrigada, Tom!) 

Duas Marias
A partir do momento em que disse sim, uma contradição passou a conviver comigo: como uma mulher feminista poderia aceitar aquele papel?

Tenho uma visão crítica da prostituição, e isso nada tem a ver com moralismo. Pelo contrário. A verdade é que, se não vivêssemos em uma sociedade patriarcal e machista que perpetua a exploração e objetificação dos nossos corpos – e que conta com nossa baixa autoestima e submissão para se retroalimentar –, nenhuma mulher veria a prostituição como uma escolha por liberdade sexual. Acho que ainda estamos muito distantes do pleno domínio da nossa sexualidade. Portanto, desconfio fortemente do discurso que vende a prostituição como "uma profissão como outra qualquer" ou a defende como uma escolha por empoderamento.

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Ao mesmo tempo, lá estava eu, protagonizando uma série sobre... Bruna Surfistinha. Ela, que há mais de uma década, representa justamente a imagem de glamour, prazer, fama e dinheiro fácil. (Não foi bem assim a história de Raquel Pacheco, mas percebo que esse foi o imaginário que se cristalizou, porque o universo da prostituição é romantizado nas narrativas por aí, dos livros às séries de TV – muitas vezes, reflexo de um olhar masculino sobre o tema.)

Tive a oportunidade de conhecer mulheres de diferentes origens que trabalham em casas de prostituição em São Paulo e no Rio. Ouvi delas que "entre dez clientes, oito são escrotos”; que o motivo de todas estarem ali é dinheiro, mas que a dívida hoje é maior do que quando entraram no ramo; que um cliente levou uma delas pro meio do mato, e ela teve de fugir pra não morrer de tanto apanhar; que outra agradeceu em silêncio quando o décimo homem da noite quis comê-la de quatro, já que sua vagina doía, e, assim, ela pôde chorar de dor sem ele notar; que elas já eram chamadas de vagabundas antes, então, pelo menos agora, as pessoas que as xingavam tinham razão.

Suas histórias me ajudaram a entender o porquê de estar ali. Essas mulheres fortaleceram o meu senso de responsabilidade quanto ao verniz que se dá à prostituição. Além disso, ter uma equipe encabeçada por mulheres, assim como a Márcia, foi um alento.

Na primeira temporada, construímos uma Bruna em uma busca solitária por amor, independência e pertencimento. E foi nos detalhes que se imprimiu um olhar feminino sobre essa história. Não só nas cenas de sexo e nudez, mas também na insistência da Márcia em, por exemplo, sublinhar uma aparência de menina de 17 anos na minha caracterização. Eu deveria ter o corte de cabelo reto, o rosto com pouca maquiagem e o figurino juvenil no contraste com as roupas de onça e cabelos pintados daquele ambiente potencializam os efeitos da violência e da ilusão que Bruna passa ao longo dos episódios. De maneira sutil, fica perceptível que há uma coerção social e psicológica que jogou a Raquel naquele privê. E o espectador pode até se perguntar se ela realmente gosta de estar ali.

Agora, na segunda temporada, a direção cuidadosa do Octavio Scopelliti me levou pra um mergulho profundo na minha personagem, principalmente na dualidade entre ser Raquel Pacheco e Bruna Surfistinha. Porque, apesar de estarmos falando da mesma pessoa, elas têm personalidades e necessidades muito diferentes. Enquanto Bruna quer fama e dinheiro, Raquel quer a garantia de ter o caminho de volta pra casa de seus pais. A ambição pela mudança de status de Bruna é uma tentativa de preencher um buraco psicológico que mora em Raquel – e na sua vontade de ser apenas uma garota com emoções normais. Apaixonar-se, divertir-se e ser amada, enquanto o sexo, o dinheiro e as drogas não passam de uma compulsão.

Quanto mais ela se torna uma, menos ela pode ser a outra. Foi esse conflito de identidade que mudou a maneira como eu me relacionava com a Surfistinha. Abandonei a intenção ingênua de fazer um retrato fiel da prostituição do Brasil por meio de produto de entretenimento pra TV. Caiu a ficha: o que a sala de ensaio e o set de filmagem cobravam de mim não era a Maria-militante, a Maria-diretora ou a Maria-continuísta; eu precisava era ser atriz. Como diz a Estrela, minha preparadora de elenco e amiga: “o ator é um ser humano profissional”. E tem algo mais humano do que a dualidade? A imperfeição, a incoerência, a falha?

Abraçar a contradição que existia na Bruna me ajudou a abraçar aquela que existia em mim mesma. Me concentrei em investigar essa história através da lente da primeira pessoa e passei a entender onde eu me identificava com ela. Atuar passou a ser emprestar meu corpo e minha alma pra personagem. Sair de um lugar distanciado, me colocar na reta, confiar. Agora, caminhamos pra nossa terceira temporada.

Sem conforto
No dia da primeira apresentação da peça da 7ª série, a garota que faria a Julieta ficou doente. Quando começou o burburinho de quem a substituiria, não quis cometer o mesmo erro do início do semestre. Levantei meus dois braços. E foi assim que deixei de lado o boticário de cor e salteado pra passar a tarde toda do ensaio-geral decorando as falas de última hora, com a certeza de que inspiraria orgulho e admiração da plateia diante do meu ato de redenção. O resultado? Um desastre. Errei todos os meus textos e as marcações, além de ter protagonizado um ataque de riso na cena da minha morte. Basicamente, escolhi passar vergonha na frente de um monte de gente.

Já me perguntei se foi naquela noite em que criei o trauma que me deixou tanto tempo longe da atuação. A única certeza é que foi ali que troquei o conforto daquela que seria minha perfeita performance do boticário pela adrenalina de estar de frente pro desconhecido. Seja como Raquel, Bruna, Julieta ou Maria, entendi que as escolhas são habitadas por dores, fragilidades e carências. Mas também por recompensas. Beija a boca do medo e vai.

Maria, por elas & eles

Raquel Pacheco, que inspirou a Bruna Surfistinha da série: 
"Meu primeiro encontro com Maria foi intenso e forte. Não sabia nada a respeito dela, e ficamos as duas vendadas durante uma hora, uma com a mão no coração da outra, fazendo os exercícios propostos pela equipe de filmagem. Quando olhei pra ela, era como seu estivesse vendo a Raquel ainda jovem, ingênua, sem as dores de tudo que eu vivi com a prostituição. Tive a sensação de que já nos conhecíamos. Fiquei esperando por cada capítulo da primeira temporada, como qualquer outro telespectador. Depois, vi e revi muitas vezes. Me surpreendi com a força e a coragem da Maria de enfrentar as cenas – muitas delas, de situações que nem vivi, ainda bem. Longe das câmeras, ela também não tem medo e luta pelo que acredita. Por causa dela, estou aprendendo a ser feminista".

Octávio Scopelliti, diretor-geral:
"Antes de assumir a segunda temporada, me preparei muito para o meu primeiro encontro com Maria. Porque ela é dessas pessoas em que você tem de entrar pela inteligência: se seu discurso é burro e suas ideias não são claras, ela não vai comprar as bobagens que você tem para falar. De imediato, foi extremamente receptiva às minhas propostas. Mas não de maneira passiva, e sim pensando junto comigo como poderíamos aprofundar as questões da Bruna. Do ponto de vista do diretor, é ótimo lidar com uma protagonista assim. E o fato de ela lidar naturalmente com as cenas de nudez mostra o olhar maduro e profissional que muitos atores ainda não conseguiram alcançar. Ela está muito mais preocupada em deixar as emoções bem representadas do que com uma cena de sexo. Isso é um entendimento profundo e valioso do que é a atuação".

Zico Góes, vice-presidente de conteúdo e programação da FOX:
"Me chama de Bruna teve a maior audiência de todos os tempos de uma série brasileira em canais premium da América Latina. Deixou muito atrás superproduções norte-americanas, como a premiada Westworld. Essa recepção foi surpreendente, porque a história da Bruna Surfistinha não era conhecida fora do Brasil. Os telespectadores embarcaram na série pela qualidade da produção – e esse sucesso passa muito pela escolha da Maria como protagonista. A FOX queria uma atriz desconhecida, para conseguir construir um personagem do zero. Então, Maria foi uma aposta. Uma aposta certeira. Ela é uma atriz diferente: além de muito talentosa, é engajada e preparada intelectualmente. E tem algo raro entre atores: sabe tirar sarro de si mesma com naturalidade. Sem falar na coragem absurda que essa menina tem. Todo mundo deveria ser mais como Maria".

Maitê Proença, atriz cuja personagem se envolve com Bruna na 2ª temporada:

"Ao mesmo tempo em que Maria não tem tiques ou vícios, como atores que já trabalham há muito tempo, ela é uma atriz extraordinária e com um conhecimento técnico de cinema muito grande. É com essa naturalidade que ela se porta dentro do set: sem ingenuidade nem dar trabalho para a equipe, mas com um frescor que a gente não está acostumado a ver nas telas. Além de ser muito inteligente, o que deixa sua interpretação com um caráter diferenciado; e a convivência, agradável (nossa arte é a arte da espera, e ter um colega inteligente ajuda a preencher as horas). Maria vai longe".

Clarice Niskier, atriz que interpreta a mãe adotiva de Bruna:
"Chama a atenção a forma sincera e forte como Maria atua: sem truques nem pudores, com sangue, raça, gana. Numa cena barra-pesada, Bruna estava com um cliente na cama de onde eu a arrancava pelos cabelos. Maria me dizia: 'Pode puxar de verdade, Clarice'. Que Maria cresça e apareça cada vez mais, porque a paixão que ela tem pelo jogo cênico é muito linda".

Gabriel Godoy, ator que interpreta o par romântico de Bruna na 2ª temporada:
"Conheci a Maria quando ela ainda era continuísta, em uma série em que eu atuava. Nosso reencontro foi lindo e generoso. Me impressionou a humildade dela, em ser uma protagonista pé no chão, com uma escuta aguçada e sempre disponível para o jogo – muitas vezes o ego do ator chega na frente. Essa postura dava o tom e fazia toda a diferença no set de filmagem".

Márcia Faria, diretora-geral
"Na série Oscar Freire 279, ela ganhou o papel pelo talento e pela sua luz – Maria ilumina qualquer lugar aonde chega. Em Me Chama de Bruna, foi muito bonito acompanhar o amadurecimento da personagem e também da Maria ao longo das filmagens. Era uma menina, com um lado bem moleca, se transformando numa mulher com uma coragem inacreditável e que trouxe um olhar profundo para a personagem, longe de qualquer estereótipo. O tema é difícil, tabu, e a gente queria tirar a prostituta do lugar de objeto, dar voz, desejo, vontade e verdade a ela. E a Maria foi fundamental. Adoraria trabalhar com ela novamente".

Estrela Straus, preparadora de elenco: 
"É muito fácil trabalhar com ela, porque Maria está o tempo todo honestamente disposta a dar o seu melhor. Ela escuta com sede e, em nenhum momento, com ego. Depois do processo da segunda temporada, o que me dá mais orgulho é vê-la respondendo para alguém que é atriz. Isso foi uma conquista, porque ela não se via como uma. Mas Maria não é apenas atriz, e sim uma grande atriz, que se entrega sem preconceitos e tem coragem de visitar as próprias sombras – algo que a Bruna exige. Quando ela está sob as circunstâncias da personagem, banca o que for. Outro aspecto marcante da Maria é a ética. Ela se posiciona e é coerente com o que acredita. Não tem diferença nenhuma em como trata alguém do catering, por exemplo, e os executivos da FOX".

Tom Rezende, preparador de elenco:
Foi por intuição que chamei Maria para o teste de Bruna. Pela experiência que tive em Oscar Freire, já sabia que ela tinha coisas fundamentais para o papel: beleza, talento e inteligência. Maria tem também autoconhecimento e uma imaginação fértil, que ajudam muito no seu processo de construção das personagens. Espero que ela não volte a ser continuísta. Uma atriz vocacional como ela não é comum encontrar". 

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Créditos

Imagem principal: Dan Behr/Divulgação

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