”Assinar é um verbo de muito valor. É existencial”, diz Mara Gabrilli. Depois de 26 anos usando a boca para escrever, ela relata os primeiros movimentos de sua mão esquerda com a caneta
Foi num sábado à noite, nesses de pandemia em que ficamos em casa de bobeira e sem muito que fazer, que surgiu uma mensagem no grupo formado por minha equipe de trabalho. "Gente, olha esse cartão-postal que a Mara me mandou. Só tem 29 anos", compartilhou a Telma.
No cartão amarelado do tempo, eu dizia em letras cursivas e enfeitadas que Paris estava maravilhosa, mas que eu sentia muita saudade. Sentia saudade da Telminha e do Brasil, em especial do Nordeste e da Bahia, uma paixão antiga.
Olhei aquele cartão e comecei a lembrar de mim, criando cada letra daquela. Sempre amei escrever e antes de ficar tetra eu mantinha diários. Na verdade, eu escrevia onde havia superfície. Valia guardanapo, toalhinha de mesa, caderninho velho e até papel higiênico. A minha mão acompanhava meu pensamento acelerado, que se processava na velocidade da luz. Essa escrita visceral tornava as reflexões extremamente orgânicas e subjetivas, porque havia pouco filtro do que era colocado no papel. Havia muita poesia também. Havia velocidade e nenhuma censura. Eu me derramava inteira no papel.
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Nessa época eu era destra e ostentava uma caligrafia caprichada. Com o acidente e a perda dos movimentos dos braços eu parei de escrever. Mas não quis que a minha condição de tetra me impossibilitasse de me expressar em textos ou de assinar meu próprio nome. Por isso, comecei a assinar com a boca. E de assinar passei a usar a boca para teclar e, finalmente, escrever.
Assinar é um verbo de muito valor. É existencial. Quando a gente assina, a gente marca presença, autoriza, nega, desaprova, chancela. E quando passei a assinar com a boca, a minha sensação era a de quem estava tomando uma atitude, virando a página e tomando as rédeas da situação.
Lembro-me de um episódio curioso quando fui reconhecer firma em um cartório e o oficial disse que eu não podia assinar com a boca. À época, 1997, eu tinha fundado o Projeto Próximo Passo, hoje Instituto Mara Gabrilli, e assinava meus cheques, contratos, documentos... Tudo com a boca.
A confusão nesse dia até rendeu um texto, no qual eu narrava o imbróglio com o oficial do cartório. Depois que publiquei a crônica dizendo que fui embora sem assinar, recebi inúmeras cartas do Brasil inteiro, com gente me convidando para reconhecer firma em tudo quanto é cartório do país, com o direito de assinar com a parte do corpo que eu bem entendesse. Segui plena assinando com a boca.
Com o desenrolar da vida e dos trabalhos que assumi, o contingente de papéis para assinar nunca parou de crescer, o que acabou também mudando a posição dos meus dentes, algo que no passado já havia acontecido, de tanto que usei uma vareta para teclar no computador.
Nos primeiros 26 anos da minha vida, escrevi com a mão direita, e há exatos 26 anos venho escrevendo com a boca. Recentemente, depois de muito pensar, calcular, visualizar e analisar a capacidade da minha mão esquerda e da minha mão direita, resolvi, no repouso dessa pandemia, colocar uma caneta na minha mão esquerda, que é a de mais destreza em movimentos finos.
Com ajuda da minha cuidadora e de algumas gambiarras, rabisquei, rabisquei, rabisquei... E só consegui fazer dois risquinhos. No final do dia, consegui escrever meu nome.
Agora treino minha habilidade no lado canhoto do corpo, uma possibilidade que só a condição de tetra trouxe à tona. Com os braços foi assim. Depois de mais de duas décadas sendo empurrada na cadeira, eu me conduzo. E piloto com o braço esquerdo, mas já tenho o joystick dos dois lados da cadeira, pois o direito também já aprendeu a pilotar. Substituir a boca por minha mão é a minha mais recente provocação, com o plus do desafio que tem sido imitar a minha letra bonitona daquele cartão postal à Telminha.
Aliás, ter relembrado aquele cartão do passado foi muito inspirador para mim. Foi como se tivesse aberto uma nova janela em meu quarto, com uma vista até então inexplorada. Por que não voltar a assinar com as minhas mãos? Começar a escrever bem com uma mão, que até então nunca tinha sido usada para tal, só provocará a outra a querer imitar. E ela já vem se inspirando na canhotinha. Movimento gera movimento, de verdade.
Espero que você também fique imbuído desse sentimento e encontre nessa pandemia um talento nunca antes imaginado, exercitando-o sem medo. Vale a pena. Pode confiar, eu assino embaixo.