Jup do Bairro celebra diversidade e arte periférica em disco

por Mayara Rozário

A cantora e apresentadora do programa TransMissão fala sobre o lançamento de ”Corpo Sem Juízo”, seu primeiro EP, autocuidado e as lutas diárias

Enérgica, acolhedora e potente. Assim é a arte de Jup do Bairro, sua maneira de expor as dores e as delícias de ser quem é. Do bairro do Capão Redondo, extremo sul de São Paulo, ela aprendeu quase tudo sozinha e virou cantora, compositora, produtora, atriz e apresentadora do programa TransMissão (Canal Brasil) ao lado de Linn da Quebrada, com quem divide os palcos no Brasil, na Europa e uma amizade de longa data.

E Jup quer mais, para ela e para os outros. “Evolução para mim não é o lançamento da Jup do Bairro ou travesti ganhando prêmio internacional. É significativo, mas é pouco. Precisamos começar a falar de quantidade”, diz. Muito dessa vontade de abrir caminhos e mostrar a qualidade artística e criativa das periferias se materializou no dia 11 de junho, com o lançamento de seu primeiro EP, Corpo Sem Juízo. Fruto de uma campanha de financiamento coletivo, o disco foi produzido pela DJ BADSISTA, com quem possui o projeto Bad do Bairro, e conta com participações de Linn da Quebrada, Rico Dalasam, Deize Tigrona e do rapper Mulambo. 

A produção musical foi executada em estúdios e produtoras das quebradas de São Paulo e os feats são com artistas igualmente negros e periféricos. Depois que desviou o olhar de holofotes que a cegavam, como define Jup, conseguiu enxergar suas referências e inspirações. E, por sorte, elas estavam pertinho, ali no bairro onde vive. Foram dez anos maturando ideias e fortificando redes criativas e profissionais até que o disco fosse distribuído, trazendo histórias pessoais e o processo de nascimento, vida e morte do corpo sem juízo de Jup do Bairro. “É um EP biográfico porque parte da minha trajetória, mas ele não é só isso porque não termina em mim.”

Em entrevista à Tpm, Jup fala sobre o processo de criação de Corpo Sem Juízo, suas influências musicais e audiovisuais para compor o projeto, autocuidado e as lutas diárias.

Tpm. O que é e o que pode um corpo sem juízo hoje?

Jup do Bairro. Olha, eu tenho levantado algumas perguntas nos últimos tempos e uma das principais é “o que pode um corpo sem juízo?”. Confesso que, quanto mais investigo, mais dúvidas surgem na minha cabeça. Eu vejo o corpo sem juízo como um corpo que cria o seu espaço, suas oportunidades, sua forma de pertencer a algum lugar que ainda não existe. Me vi muitas vezes procurando um lugar que me pertencesse, até eu enxergar que precisaria criar esse imaginário e que, para criá-lo, eu precisaria envolver pessoas. Acho que o que pode meu corpo sem juízo hoje é entender que não posso fazer tudo sozinha. Esse pensamento veio muito da campanha de financiamento coletivo que eu fiz para o meu disco, de me responsabilizar pela captação dos fundos para criação do EP, mas jogando um pouco dessa responsabilidade para o público que me acompanha. A criação de novos imaginários vem a partir da gente, do que a gente consome, cria, executa. E dentro de toda essa análise eu entendi que eu posso voltar a sonhar os sonhos que me foram roubados, acreditar em mim e na minha contribuição para minha geração. Que eu podia ajudar a criar um espaço onde corpos sem juízo não caminhem sozinhos. E digo tudo isso porque eu não acredito na representatividade una. Para mim, é preciso abrir espaço para que outras venham e invadam, que falem sobre si e suas vivências.

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Esse senso de coletividade é perceptível no seu trabalho. No dia da audição do EP, você disse que não era um lançamento da Jup do Bairro, que você serviu como um receptáculo para comunicar algumas coisas. Como essa coletividade influenciou na sua vida e no desenvolvimento do disco? Corpo Sem Juízo é um EP biográfico porque parte das minhas histórias, das dores e delícias que atravessaram a minha trajetória, mas ele não é só isso porque não termina em mim. Eu escrevo com a pretensão de que ouçam o que tenho para dizer, mas também para que eu possa me ouvir. Peguei muita coisa do meu projeto Bad do Bairro, onde crio numa pegada mais funk e falo sobre sexualidade e sensualidade, mas quis que esse trabalho tivesse um apelo mais profundo. E creio que a coletividade o norteou muito, principalmente porque percebo a dificuldade de acesso e construção de iniciativas culturais nas quebradas.  Também vem muito da ideia do quão falho é a gente falar em evolução, quando poucas pessoas como eu estão invadindo espaços. Despertei muito a minha sensibilidade para aprender a admirar as pessoas que estão comigo e uma forma que eu encontrei de fazer isso foi de sempre citá-las, começando pela minha equipe: Thiago Felix, Bia Bem, Izabela Costa e Felipa Damasco. A produtora Deck9 Record’s, que me cedeu um espaço pra que eu pudesse emergir, e a Fábrica de Cultura do Capão Redondo. É importante nomear pessoas e instituições para que possamos criar um novo olhar, um artista não faz tudo sozinho. 

Essa sua vontade de criar um espaço que contemple você e as pessoas que te rodeiam também influenciou na escolha de trabalhar e exaltar artistas e produtores periféricos? Qual a importância de alimentar essa rede, não só afetiva, mas profissional? Eu acho que essa rede de afetos vai acontecendo conforme se dão as relações, mas o que me parece urgente é dar um passo a mais e criar não só uma rede afetiva, mas também efetiva. Precisamos criar redes de apoio financeiro, de suporte emocional, de troca. Eu sou de periferia e, apesar do reconhecimento que tenho, continuo fazendo os meus corres para pagar a internet, para colocar comida dentro de casa. É um trabalho suado, mas reconheço os meus acessos e a ascensão que meu trabalho está. E por isso é importante falar sobre essas pessoas. Acho que Corpo Sem Juízo é um ótimo exemplo para isso. Eu produzi um disco de muita qualidade na quebrada, num estúdio da quebrada. Consegui unir muitas periferias em um único trabalho. Eu sou do Capão Redondo, a BADSISTA, produtora do EP, é de Itaquera, a Deck9 fica no Parque Regina. Juntos fizemos essa troca e mostramos o quão capacitados somos. Quando eu vou em uma Fábrica de Cultura eu vejo tanta gente que quer fazer sua arte acontecer, tanta gente adquirindo talento. Para mim talento não é dom, a gente adquire com estudo, oportunidades e prática. Vejo que a quebrada está cada vez mais rica, mas é fácil desacreditar dessa possibilidade artística pela falta de acesso e impulso.  Por isso eu gosto pegar essa responsabilidade para mim, ser uma espécie de capitalizadora para levar os meus e as minhas para onde eu for. A cada degrau que subo na minha carreira, eles sobem também. 

E de que forma você acredita que a arte produzida pela periferia e por esses corpos sem juízo pode chegar a mais lugares? Precisamos questionar esses lugares quando a oportunidade chegar, inclusive na cena artística. Digo isso porque o racismo é um problema de todo mundo, principalmente do branco. A transfobia é um problema de todo mundo, principalmente da pessoa cisgênera. Todas essas dilatações, exercícios e manutenções do sistema opressor se renovam se compactuamos com elas. Da mesma forma que podem ir se dissolvendo se trabalharmos para extingui-las. Precisamos usar nossas vozes, nos colocarmos no front. A nossa geração tem tanto acesso à informação, não vejo motivo para continuar agradando mídias e um mercado excludente. Apesar de me sentir pessimista, eu nunca me vi derrotista. Creio que, por mais difícil que seja mudar problemas estruturais, ainda é possível.

Você acha que lançou esse trabalho no momento certo? Tanto por conta da pandemia, mas diante dessa onda de protestos para denunciar o genocídio da população preta, pobre e trans. Olha, com muita dor eu digo que o meu corpo e o corpo das pessoas que participaram do EP já vinham sendo preparados para esse momento. Nós estávamos prontos para a pandemia e para essa repercussão sobre o racismo. Hoje o mundo está passando pelo que pessoas pretas, trans, travestis e periféricas passam. Esse medo de sair e não voltar mais, medo de ser assassinado. E acho que o modo como a saúde pública está sendo gerenciada nesta pandemia também acaba sendo uma espécie de assassinato. Vestígios perversos desse governo. De alguma forma esse EP precisava sair neste momento. Vi muita gente falando que podia ser perigoso lançar um disco agora porque dificulta a divulgação, não pode fazer show, etc, e eu tenho vindo contra essas estratégias. Eu sei que vai ter um peso para quem já estava aguardando pelo projeto, pelo público das parcerias. Acho que não podemos nos prender a esses números, a essas estratégias antigas, que já são caducas. Vejo várias pessoas falando que estamos vivendo o apocalipse e, sinceramente, acho que estamos andando sob os escombros já faz um tempo. Existe fome, desigualdade e falta de oportunidade. Não precisa ir muito longe, é só olhar o descaso com as periferias. Tem gente falando que a população periférica não se importa com a pandemia, mas que tipo de amparo ela tem? Quais expectativas ela pode criar? Precisamos reconfigurar o destino dessas pessoas, porque muitas enxergam suas mortes ou pelo vírus ou na mão da polícia. E não deve ser assim. Precisamos de uma outra abordagem, de uma educação que interesse a população marginal e preta, não uma educação fadada à servidão.

Por que a escolha do dia de Corpus Christi para o lançamento do EP? Eu consegui finalizar o EP uma semana antes do isolamento social começar. Se eu tivesse esperado mais um pouco tudo podia ter ido por água abaixo. E, desde então, tudo foi feito entendendo esse tempo. Eu fiz o ensaio fotográfico para a divulgação e para o encarte do disco aqui em casa mesmo, são autorretratos. A capa do EP foi feita por mim também. Consegui executar esse trabalho e quis compartilhar ele no feriado de Corpus Christi para ressignificar o lugar de Jesus e de forma pretensiosa me colocar nesse lugar, dentro das metáforas da minha quaresma, quando emergi nisso e me isolei com a BADSISTA, com o Thiago e com o Mulambo para finalizar as bases e as composições. E distribui o meu corpo sem juízo nesta data: “Tomai, comei, isto é meu corpo, que é compartilhado por vós. Fazei isto em memória de mim”. 

Como você tem enxergado a arte nos últimos tempos? Li uma entrevista em que você dizia que só depois de ter deixado de ver a arte por uma ótica higienista é que se deu conta que suas influências estão no seu entorno. Eu acredito que a arte está tendo outras urgências e é muito louco quando você verbaliza isso para mim porque eu gravei o EP com amigos, pessoas que admiro e valorizo. Sabe quando você olha para um holofote por muito tempo e aquilo começa a incomodar? Acho que foi mais ou menos isso que aconteceu. Depois que eu desviei o olhar, eu percebi que as minhas referências estavam ali, no bairro onde moro, andando e criando comigo. Claro, tenho vontade de fazer parcerias com artistas que não conheço e que estão no mainstream. A arte é muito transformadora porque ela chega em vários lugares, principalmente a música, que é um mecanismo de maior execução e percurso. 

Como foi chamar artistas como Deize Tigrona, Rico Dalasam, Linn da Quebrada e Mulambo pra participarem de Corpo Sem Juízo? Vocês escreveram as músicas juntos? “Transgressão” eu escrevi antes mesmo de começar a cantar, “Pelo amor de Deize” eu fiz para homenagear a Deize Tigrona. Eu queria muito gravar com ela e uma vez fui lá visitá-la no estúdio da BADSISTA. No final, começamos a brincar, fazer um freestyle. E pensei justamente em escrever sobre depressão porque a Deize é uma artista que fala abertamente sobre isso, sobre os problemas que ela passou. E é tão importante ouvir uma mulher preta periférica falando sobre, tem muito peso, porque uma parte grande da periferia acha que isso é frescura, que não enxerga a depressão como uma doença. “All You Need is Love” o Rico escreveu a parte dele e eu escrevi o restante. Foi bem divertido, Rico, Linn e eu conseguimos recriar o imaginário do que poderia ser o amor para o corpo preto. Já a parceria com o Mulambo foi um encontro. Eu o conheci em um show dele e, desde a primeira vez que eu o vi, me veio uma vontade de gravar algo com ele. Eu me vejo no Mulambo, até brinco que ele é minha versão boy cis. A performance e a escrita dele me contemplam muito, e quando ele me enviou a sua parte de “Luta por Mim” eu não pensei duas vezes, li com lágrimas nos olhos e soube que era aquilo. É uma música que faz muito sentido neste momento que estamos vivendo. O Pininga fez o instrumental dessa música e ficou exatamente como eu queria.

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Além desses artistas plurais, é perceptível a diversidade musical no EP: tem funk, rap, heavy metal. Isso é um reflexo do seu gosto musical? Nossa, demais. Isso vem muito das minhas influências em comum com a BADSISTA também. Fiz um estudo para composição e para melodia do EP, rebuscando minhas referências, então fui construindo esse ciclo com o que eu gostava e consumia. Durante esse processo eu ouvi muito o Mulambo, a sonoridade que ele e o Vinex, produtor dele, trazem me contempla, me toca muito. Eu ouvi Nelson Gonçalves, que me levou para uma parte mais nostálgica da minha infância, escutei bastante Rage Against the Machine, Slipknot, Korn. E é claro, a minha escola que é o rap nacional, meu berço. Aprendi muito ouvindo Expressão Ativa, Facção Central, De Menos Crime e Nega Gizza. Tentei fragmentar tudo que eu ouvi durante a minha vida até hoje. Foi muito bom para sair de um flow e chegar em outros lugares, estudar dicções e arranjos que eu queria experimentar. 

E o que você andou consumindo de audiovisual? Principalmente para produzir os clipes de “All You Need Is Love” e “Transgressão”, lançados recentemente. Eu sempre gostei muito da arte 3D. Tinha um roteiro pensado, mas por conta do isolamento não foi possível criar. Então comecei a estudar mais e conheci o Rodrigo de Carvalho, que é um artista incrível que trabalhou com a MC Tha, com o Jaloo, Pabllo Vittar e Lia Clark. Convidei ele pra fazer o clipe de “All You Need Is Love” e tudo o que ele me trouxe, desde Nicki Minaj a Blade Runner, eu gostei. Estudamos muitas produções de ficção científica. “Transgressão”, por sua vez, tem muita referência de Sailor Moon, do filme “Aniquilação”. Fizemos tudo isso juntando o que eu gosto e flertando um pouco com a cultura pop, com o cyber ghetto, um lance meio afrofuturista.  

Esse modo como você brinca com as referências e com os assuntos se transfere muito para o seu discurso e para sua arte. Por mais que tenha um cunho político explícito, dá para notar que você tira o peso da abordagem. Isso tem a ver com autocuidado, uma forma de resistir em meio a tanta coisa? Eu acredito que a saúde mental é o maior ato político e o mais difícil de ser colocado em prática. O que tem me ajudado muito é partilhar, trocar com as pessoas e também entender os meus sentimentos. Tenho vivido este momento com muita tristeza e com muito medo e insegurança. E que bom que estou sentindo isso, porque mostra que as coisas ainda me tocam, que mesmo diante de tanta informação eu consigo me humanizar e me comover com o que está acontecendo. E, mais do que comover, isso me move. Eu aprendi a canalizar minhas emoções de uma outra forma, acho que fui criando uma casca de proteção, mas nos últimos dois meses eu tenho sentido muito as coisas, acho que estou me reconfigurando. Sei lá, coisas pequenas como mandar uma mensagem e perguntar como a pessoa está, falar que lembrou dela, acabam preenchendo a vida de uma maneira boa. E é onde temos que reconhecer que precisamos uma das outras. Então tenho feito esse exercício de diálogo para tentar externar os meus pensamentos. Muito se fala de ócio criativo, um termo criado por um homem italiano branco, que pressupõe que o trabalho e a diversão estão aliados. E como fazer esse exercício se não conseguimos nem pensar? As pessoas estão preocupadas, o dinheiro está acabando, não tem saneamento nas casas e isso me dói, me atravessa. Mas ao mesmo tempo eu tenho feito o que é possível para que a gente se mova juntos, para que essa comoção não seja coisa de rede social e nem passageira.

Dá o play em “Corpo sem Juízo”!

Créditos

Imagem principal: Jup do Bairro/Felipa Damasco/Cai Ramalho

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