Fernanda Diamant, a menina que vendia livros

por Denise Meira do Amaral

Fernanda Diamant, curadora da Flip e criadora da revista Quatro Cinco Um, inaugura mega livraria no Copan

“Deixa eu virar para a esquerda. É meu melhor lado”, explica Fernanda Diamant, 40, ao argentino Pablo Saborido, durante a sessão de fotos para a Tpm, no terraço do Copan, no centro de São Paulo. “Aliás, pela esquerda é sempre melhor”, brinca, segurando os cabelos sacudidos pelo vento do alto de 32 andares e a mais de 110 metros do chão.  

É no térreo desse prédio curvilíneo, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, que Fernanda, filósofa e curadora da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) vai inaugurar a primeira livraria num dos edifícios mais icônicos de São Paulo, localizado no centro da cidade, região onde várias outras já fecharam as portas. "Já morei no Copan, é um lugar que adoro e conheço bem. O centro é muito vivo e tem um público incrível, mas até hoje falta uma livraria. Enquanto em Pinheiros você tem várias inaugurando, como a Travessa, a Mandarina e a Livraria da Tarde, o centro não tem nenhuma independente”, diz.

LEIA TAMBÉM: João W. Nery, primeiro homem trans a fazer uma cirurgia de readequação sexual

A ideia surgiu em 2017, assim que a Quatro Cinco Um, revista mensal de crítica de livros, foi idealizada. Isso porque Fernanda almejava um espaço físico para a venda de livros resenhados, seguindo os passos do periódico britânico de ensaios literários, o London Review of Books, que abriu em 2003 um endereço próprio, a London Review Bookshop.

A livraria contará com mais de 200 metros quadrados e cerca de 12 mil títulos, entre ficção e não ficção. Seu nome de batismo, Megafauna, é uma alusão irônica aos animais pré-históricos de grandes proporções que, tal qual os livros na era atual do streaming e dos smartphones, desapareceram na Era do Gelo.

A quebra de grandes nomes do setor, como a Saraiva e a Livraria Cultura, não refrearam o ímpeto de Fernanda, justamente porque elas não são o modelo idealizado para a Megafauna. “Nos outros países, as livrarias independentes, que contam com uma curadoria e com um direcionamento, têm crescido e se mantido. Afinal, a ideia não é ter uma livraria e depois ter outra, e outra. Não somos preocupados somente com a venda dos livros. Queremos criar um ponto de encontro democrático, que as pessoas frequentem e que possam conhecer as novidades do mercado editorial”. A Megafauna também vai contar com um café-restaurante com cardápio de ingredientes brasileiros assinado pela chef Bel Coelho, além de um espaço para eventos.

Homenagem póstuma

Fernanda nasceu no bairro do Itaim e foi morar aos sete anos em um sítio, em São Roque, com os pais veterinários. Desde pequena, já era uma leitora voraz. Encontrou em seu companheiro, Otavio Frias Filho, diretor de redação e dono do jornal Folha de S. Paulo, morto em agosto de 2018, com quem ficou por mais de dez anos, uma parceria para seu gosto literário. “Sinto que tudo que faço é uma homenagem a ele. O Otavio sabia que eu tinha uma vontade abstrata de ter uma livraria, mas não chegou a saber objetivamente desse projeto. Uma pena, porque acharia maravilhoso. Ele era um grande leitor, uma pessoa que tinha uma relação muito intensa e consistente com a leitura e com os livros.”

Fernanda ainda lembra que aprendeu com Otavio a ser mais pé no chão, o que foi fundamental para o planejamento da Megafauna. “Ele tinha muita preocupação de ver as coisas darem certo e de se sustentarem financeiramente. Afinal, era uma pessoa mais velha, já tinha passado por muitas crises no Brasil. Tinha um olhar menos apaixonado – o que sempre foi muito bom. Quando eu ficava muito empolgada com alguma coisa, ele me puxava um pouco para o chão. Sua visão, mais realista, permanece. Unida à minha, acaba virando uma terceira coisa, que é mais interessante”.  

Pouca gente sabe, mas, além de publisher, jornalista e dramaturgo, Otavio era um encantador de crianças. Em qualquer almoço ou viagem, lá estava ele, sentado no tapete (e muitas vezes rolando por ele), cercado de pequenos ouvintes atentos às suas histórias cheias de minúcias.

LEIA TAMBÉM: Livras é a primeira livraria feminista de Santa Catarina

“Ele tinha um projeto de fazer um livro que fosse sua versão de histórias famosas, como a do Titanic e Romeu e Julieta. Ele chamava de 'Histórias para pensar'. A Miranda [filha mais velha do casal], por exemplo, já ouviu várias”, conta Fernanda.

Esses contos foram ditados por Otavio a Fernanda em seus últimos dias de vida, já no hospital. A primeira delas, “A vida de Sidarta Gautama”, foi publicada na revista Piauí, em setembro de 2018, com texto introdutório da própria Fernanda: “os relatos, nem sempre fiéis às versões originais, provocavam perguntas filosóficas e metafísicas das crianças. Ele adorava respondê-las, frequentemente com outras perguntas”, escreveu no artigo. A ideia é reunir todos os contos em um livro – ainda sem data de lançamento.

Bandeiras

Além de Fernanda, a Megafauna conta com outros quatro sócios: seu pai, o médico-veterinário Thiago Salles Gomes, a arquiteta Anna Ferrari, a editora Maria Emília Bender e o empresário Arthur Mello. Com três mulheres na sociedade, além de homens engajados na causa, Fernanda antecipa que a livraria terá, sim, uma curadoria feminista. “É inevitável. A gente fala e pensa nisso o tempo inteiro. Temos lido mais autoras mulheres, assim como as editoras estão publicando mais mulheres, assim como autores negros. Eu tenho lido muitos autores negros, sobre o feminismo negro. A questão mais urgente a se tratar hoje no Brasil é justamente o racismo. Inclusive, acho que ele é a origem de todos os outros problemas”.

LEIA TAMBÉM: Você é o seu trabalho? Mulheres refletem sobre suas escolhas profissionais

Com duas filhas pequenas, Miranda, 9, e Emília, 2, Fernanda mantém a dupla jornada feminina. Além da livraria, que está em fase final de obras, ela está trabalhando na programação da próxima Flip, que começa em julho e terá como homenageada a autora norte-americana Elizabeth Bishop. “Dá um trabalhão manter carreira e maternidade, mas eu tenho sorte em contar com uma estrutura. Não só financeira, mas também familiar – eles estão muito perto de mim, o que me ajuda muito. Acredito que faz um bem enorme para as crianças perceberem a mãe se realizando profissionalmente. Fico muito feliz que elas tenham nascido neste momento, em que muita coisa está se revelando e a gente tem muito mais consciência da sociedade machista e todos os problemas que a gente vai aos poucos enfrentando”, diz.

Flip

A escolha de Bishop – apesar de severamente criticada nas redes sociais por ser estrangeira e por ter feito comentários simpáticos à ditadura brasileira – também teve motivação feminista. Fernanda queria homenagear uma mulher em sua segunda edição (em sua primeira curadoria, o homenageado foi Euclides da Cunha). Além de mulher, feminista e de ter vivido no Brasil por mais de 20 anos, Bishop era homossexual – ela assumiu um relacionamento com a urbanista brasileira Lota de Macedo Soares na década de 50. 

“Eu gosto da Bishop desde adolescente, sempre tive afinidade com a obra dela. Além de ter certeza de que queria homenagear uma mulher, havia também um desejo da própria Flip em escolher a autora. Não foi uma decisão só minha. A Liz Calder, criadora da Flip, é inglesa e nunca houve um autor de língua inglesa homenageado. Bishop morou muitos anos no Brasil e divulgou a literatura brasileira para o mundo. Fez uma antologia importantíssima para a língua inglesa. Além disso, escreveu muito sobre o Brasil, não só os poemas, mas deixou muitas cartas e impressões sobre o país. Não me ocorreu que essa posição política dela, ou essa afinidade com esse grupo de pessoas, fosse ter esse impacto nesse momento”. Bishop será a primeira autora estrangeira homenageada pela Flip, que chega a sua 18ª edição em 2020, e apenas a quarta mulher.

Foi em um ensaio para a revista Piauí, de 2009, que Otavio Frias revelou uma série de correspondências da escritora, que voltaria a reviver nos tribunais da internet após a homenagem. Entre elas, uma para seu grande amigo, o poeta Robert Lowell. “Bem, foi uma revolução rápida e bonita, debaixo de chuva – tudo terminado em menos de 48 horas”, escreveu em 4 de abril de 1964, três dias depois do golpe que daria início a mais de duas décadas de regime militar no país.

Nas cartas, ela ainda diz: “A suspensão dos direitos, a cassação de boa parte do Congresso etc., isso tinha de ser feito por mais sinistro que pareça. De outro modo teria sido uma mera ‘deposição’, e não uma ‘revolução’ – muitos homens de Goulart continuariam lá no Congresso, todos os comunistas ricos iriam fugir (como alguns fugiram, é claro) e os pobres e ignorantes seriam entregues à sua sorte. Muito amor. Elizabeth”.

“O artigo era do Otavio e, na época, conversamos bastante sobre isso. E sei justamente o tamanho que isso tem na obra dela. É algo irrelevante e foi transformado em uma história gigante. É o que acontece em redes sociais: pintaram ela de algo que não é”, defende Fernanda.

Saindo do sedentarismo

Polêmicas à parte, o livro, segundo Fernanda, é parte fundamental de qualquer sociedade como instrumento gerador de reflexão de seus próprios problemas, além de colorir o universo da criação e da fantasia. “Precisamos encontrar caminhos para as pessoas perceberem o quanto o livro acrescenta na vida e torna as coisas mais interessantes e diversas. Mas existe um esforço. O livro é como um esporte. Para conseguir ter uma vida saudável e se exercitar, exige dedicação. A leitura tem um pouco dessa mesma dinâmica – ela fica cada vez mais fácil quanto mais você faz. Começar a ler é sempre muito difícil e a gente não tem o hábito da leitura. Historicamente, a gente já não tinha o hábito de leitura de uma forma ampla no Brasil. Temos problemas gravíssimos de educação. E até mesmo o público leitor acabou sendo distraído ou sequestrado pelos streamings de filmes. Então, temos um trabalho de resgate aí”.

Ataque à cultura

Além das dificuldades culturais, ela reforça que existe um outro obstáculo atualmente nessa batalha para incentivar a leitura. “Esse governo faz justamente esse movimento anti-cultura. Eles querem que as pessoas fiquem ignorantes, porque assim é muito mais fácil para se ter o controle. Esse governo faz o elogio da violência e o elogio da ignorância. Combater e resistir a essa política é, a meu ver, seguir fazendo o que a gente faz: promover cultura e promover o livro”.

Segundo ela, não tem como não ser de esquerda em um momento como esse. “Sou progressista, antifascista, antirracista, anti-homofobia, feminista. Acredito que o caminho para uma sociedade melhor, menos desigual e menos violenta é defender o pensamento crítico, as ciências, a educação e a arte. Diante disso tudo que estamos vivendo no Brasil, não tem como não ser de esquerda, uma ideia alargada de esquerda", defende.

Créditos

Imagem principal: Pablo Saborido

Fotos: Pablo Saborido

fechar