Aos 26 anos ela ficou tetraplégica. Desde então, não parou mais de se mexer. A história dela poderia ser apenas inspiradora. Mas talvez seja mais do que isso.
No dia 21 de agosto de 1994, Mara estava em Trindade, Rio de Janeiro, acompanhada do namorado e do melhor amigo numa viagem de fim de semana. A moça de 26 anos acordou mais cedo e foi sozinha até a praia. Estava triste. Entre outras queixas, o relacionamento não ia bem. Sentada na areia, olhando fixamente para o sol, pediu a Deus que sua vida mudasse de rumo.
Cerca de 12 horas depois o pedido foi atendido. Correndo um pouco mais do que devia, o namorado perdeu o controle do carro num trecho da serra chamado não por acaso “curva da morte”, e despencou 15 metros barranco abaixo. Durante uma das capotadas, Mara quebrou o pescoço. Desde então, ficou tetraplégica e depende de assistência 24 horas por dia, inclusive para mudar de posição na cama.
Alguns capítulos desta história você provavelmente conheça em palavras da protagonista, registradas na última página desta publicação desde a primeira edição da Tpm, em maio de 2001. Dona da coluna Um Pensamento, é psicóloga, publicitária, secretária municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida de São Paulo e fundadora da ONG Projeto Primeiro Passo. Ficou também conhecida como “modelo” porque, depois de perder os movimentos do pescoço para baixo, ilustrou as páginas da nossa irmã mais velha, a revista Trip, no primeiro ensaio sensual de uma tetraplégica feito no Brasil. Era setembro de 2000.
No filme Mar Adentro (baseado em fatos reais, dirigido pelo espanhol Alejandro Amenábar, em 2004), o personagem Ramón Sampedro, vivido por Javier Bardem, luta pelo direito à eutanásia depois de quebrar a coluna vertebral ao mergulhar no mar e bater numa rocha. Mexer apenas a cabeça lhe parece não valer a vida. Mara faz o estilo “muito pelo contrário”. Desde o acidente não pára mais de se revirar: criou a ONG que ajuda pessoas com dificuldade de mobilidade, candidatou-se a vereadora e foi nomeada secretária municipal.
Mara me recebeu em sua sala no prédio da prefeitura de São Paulo, no centro da cidade. De tempo em tempo, pedia para que mudassem-na de posição e, durante metade da entrevista, esteve de pé na cadeira (ela possui uma cadeira que tem o recurso de deixá-la assim, sustentada por um suporte de ferro). Quando sentada, as funcionárias apertavam suas pernas e braços sem parar, a fim de ativar a circulação. Mara nunca está sozinha.
Não engasga ao dizer que o acidente não entra na lista dos episódios mais doloridos de sua vida. Mas você não está prestes a mergulhar num universo de tragédias. Ao contrário. Mara explica o sexo, o prazer, fala de filhos, família, perrengues e mostra que existe uma vida muito boa além da dor.
Aos 26 anos ela ficou tetraplégica. Desde então, não parou mais de se mexer.
A história de Mara Gabrilli poderia ser apenas inspiradora. Mas talvez seja mais do que isso. Talvez ela nos mostre que sentir dor, e dar ao sofrimento uma cadeira cativa na sala de nossas emoções, pode ser uma das melhores coisas da vida
Tpm. Você acha que homens e mulheres lidam de maneira diferente com a dor?
Mara. Acho que sim. Durante meu tratamento, vi mulheres muito fortes, que depois de três meses já faziam algo produtivo. Conheci mais mulheres sensacionais do que homens. Eles eram mais murchos. A mulher tem uma capacidade maior de dar a volta por cima. Talvez por gostarmos de esmiuçar a dor. Somos mais viscerais, isso de sofrer, de acordar um dia completamente loucas, com a dor do mundo.
Como foi o seu acidente?
Eu estava voltando da praia com o Paulo, meu namorado na época, e com meu melhor amigo. Estávamos subindo a serra de Taubaté, Paulo fez uma curva equivocada e perdeu o controle do carro. A gente caiu e foi capotando. Fui sentindo o carro virando, virando, aquele barulho. Lá embaixo dei uma apagada e acordei com meu amigo gritando meu nome. Com os dois não aconteceu nada de grave, só tiveram alguns arranhões. Eu sentia muita dor no pescoço, não lembro de ter sentido nada parecido. O Paulo, já fora do carro, segurava minha cabeça para fora da janela e, cada vez que ele respirava ou tentava mudar de posição, eu gritava de dor. Depois de duas horas e meia chegou o bombeiro e falou: “Vou tirar você daí, imobilizar sua coluna e seu pescoço e serrar o carro”. Na hora em que ele ligou a serra, eu apaguei.
Como foram os primeiros socorros?
Fui para um hospital em São Luiz do Paraitinga. Existe um corticóide, o Metilpredinissolone, que bloqueia o edema da lesão. Se não tomar isso nas primeiras oito horas, a lesão pode subir um ou dois níveis e agravar a paralisia. Há quatro ou cinco anos o Hospital das Clínicas fez um protocolo para todos os paramédicos ministrarem esse remédio. Meu acidente foi há 11 anos, então, imagina, ninguém conhecia. A grande sorte foi que tinha no hospital um neurocirurgião de plantão que conhecia e tinha o remédio. Se eu não tivesse tomado, jamais respiraria sozinha. No dia seguinte, fui transferida para o Einstein [Hospital Israelita Albert Einstein], em São Paulo.
Quanto tempo levou para voltar a respirar?
Dois meses, mas é uma vida. No primeiro mês, eu não melhorava, era fisioterapia quatro vezes por dia. Depois comecei a evoluir devagar. Quando cheguei ao nível em que eu dava o comando e o aparelho entrava com o ar, que já era avançado, eu não podia dormir que ele apitava. Não era automático. Eu tinha que ficar pensando: “Estou inspirando, estou expirando”. Eu falava: “Será que eu vou me mexer?”. A resposta era “Mara, respira!” [risos]. No dia em que consegui respirar sozinha, fui para os Estados Unidos e fiquei dois meses e meio.
Por que você foi para os Estados Unidos?
O presidente do Einstein na época recomendou que eu fizesse reabilitação lá. É outro mundo! O hospital era enorme, tinha terapia de mão, terapia artística, terapia ocupacional, tudo. Para ter alta, todos os profissionais que lidaram comigo me sabatinaram em inglês. “Se você tiver que parar uma pessoa no meio da rua e ensiná-la a alongar seu corpo?” Eu tive que ensinar, como ensino às meninas [assistentes que trabalham para ela]: “Pega meu braço, gira pra cá, dobra aqui, não ultrapassa esse limite”. Minha mãe e meu irmão viajaram comigo. Ela participou do processo de enfermagem e, se eu precisasse de ajuda, estava apta para ajudar. Meu irmão participou da fisioterapia e aprendeu técnicas para me transferir para um helicóptero, que é mais alto, para um barco, que é mais baixo, para todo lugar.
“O médico falou que eu tinha 1% de chance de andar. Acho que pensou que eu ficaria desesperada, mas fiquei tão feliz com aquele um por cento”
Mara Gabrilli
Quando você recebeu a notícia de que não ia mais se movimentar, teve um momento de desespero?
Nunca tive esse momento. Primeiro porque, quando o médico resolveu me dar a notícia, eu já tinha percebido. Ele falou que eu tinha 1% de chance. Acho que pensou que eu me desesperaria, mas fiquei tão feliz com aquele um. Um por cento não é zero. Não respirar sozinha me dava medo. Eu ficava pensando como iria sair, passear, se tinha que estar sempre ligada na tomada. Era tanto desespero por causa disso que, no dia em que eu voltei a respirar, a paralisia não pesou tanto. Eu me senti com uma liberdade muito grande de poder ir, vir e respirar.
Você sentiu que as pessoas se afastaram de você nessa fase por não saber como lidar?
Minha irmã nunca suportou a dor. Eu não entendia o que rolava com ela porque ela sumiu. Um dia ela falou: “É que aconteceu com você o pior que poderia acontecer com um ser humano”. A gente estava na praia, eu estava de biquíni indo para o mar. Ela falou aquilo, eu fiquei olhando para a cara dela e pensei: “Não vou convencê-la”.
Como foi quando você saiu do hospital?
Nas primeiras semanas, me sentia uma cabeça voadora [risos]. Morava em São Paulo, num apartamento duplex com escada em caracol. Meus pais moravam numa casa também com escada e iam mudar para outra, que estava sendo reformada e era também cheia de escadas, desníveis. É a casa em que moro hoje, ainda deu tempo na reforma de enfiar rampa, elevador, plataforma. Nesse ínterim, a gente foi para a casa de uma amiga que estava vazia. O pai dela tinha usado cadeira de rodas, a casa era toda plana. Fiquei lá um ano.
Você nunca se revoltou? De ficar puta?
É. De achar injusto, ruim estar assim. Já. Mas sabe quando? Quando a pessoa que me ajuda não está funcionando, faz do meu dia o inferno. Porque não sabe cuidar direito. Se não me põe numa posição confortável, não consigo dormir. Ou quando não consigo administrar o tempo. Não sou eu que faço as coisas, é alguém que faz por mim, e eu dependo da velocidade desse alguém.
Como é sentir dor hoje?
A sensação é totalmente diferente. Não é que dói, é uma sensação muito interna no meu corpo, que eu aprendi que é dor. Por exemplo, depilação. Eu sinto dor, mas não é uma dor ruim como antes. É mais tranqüila, mas sei que é dor. Se eu levar uma injeção, sinto a agulha entrando, aquela coisa geladinha, dura e comprida dentro da pele. Antes eu não sentia porque a dor encobria essa sensação. Mas é sempre a mesma sensação, seja dor de barriga, seja se você pisar no meu pé ou se eu tomar uma picada de abelha. O que muda é a intensidade e a duração.
Como se fosse um aviso?
É um aviso. Aí eu vou descobrir onde é, o que está acontecendo. Uma vez queimei minha perna muito feio. Estava no carro com um amigo, com o pé em cima do painel. Como sinto muito frio, deixei o ar quente ligado. Tampei a saída do ar com a canela e ficou saindo horas aquele ar em cima da minha perna. Comecei a sentir muita dor, só que estava para ficar menstruada e falava para o meu amigo que estava com uma cólica [risos]. Eu não sentia dor no local, só a sensação de dor. Quando saí do carro tinha furado a perna, tive que fazer enxerto. Depois desse dia que quase cheirou churrasco, sei qual é sensação de queimado [risos].
Como você lidou com as transformações depois do acidente?
O corpo cria vias de comunicação e eu fui aprendendo a entender. Por exemplo, quando preciso fazer xixi, bate uma compressão. Quando é cocô, sei até se é urgente, urgentíssimo[risos].
Já aconteceu de não dar tempo de chegar ao banheiro?
Já e foi tema de uma coluna. Eu entrei no avião com o Alfredo, meu namorado, estávamos voltando de Miami na classe executiva, tinha umas 15 pessoas. Me deu uma dor de barriga e não deu tempo de fazer nada. Foi uma quantidade absurda. Ele me pegou pelo pé, como se pega bebê, me levantou e demorou umas duas horas para limpar tudo. Superagradável, né? Saí do avião com o cobertor enrolado na cintura [risos].
Você ainda usa sonda de alívio para fazer xixi?
[A sonda é um tubo bem fininho introduzido na bexiga via uretra para retirar o xixi e despejá-lo num recipiente.] Uso. É uma opção. Se cada vez que eu tiver vontade de fazer xixi tiver que sentar num vaso, fica difícil. A probabilidade de encontrar um banheiro a que consigo chegar é de 10%. Com a sonda, eu faço até no carro, coloco numa garrafa, fecho e jogo fora. Outro limitante de mulheres que têm deficiência é que é difícil passar a sonda sentada. A minha cadeira é bacana porque eu faço em pé, igual a homem [risos].
O acidente foi a maior dor da sua vida?
Nem de perto. Mas esse dia em que voltei dos Estados Unidos foi muito dolorido. Voltei para uma casa a que nunca tinha ido, num corpo que nunca tinha tido. Eu estava acostumada a chegar de viagem, pegar meu carro e visitar alguém. Não tinha mais essa coisa “vou pegar o meu carro e sair”, ou “vou me jogar no sofá”. Foi o maior vazio que já senti. Era 24 de dezembro. E ainda fui passar o Natal na casa da amiga que me emprestou a casa e morava ao lado. Foi tudo muito estranho. Mas tive dores muito fortes por coisas que aconteceram comigo na adolescência, vinculadas a algum relacionamento. Eu saí da minha casa com 18 anos.
Você foi morar sozinha?
Num primeiro momento, fui. Minha mãe tinha uma confecção de roupas, e eu vendia para ela e fazia uma grana. Morava e trabalhava em Santo André e fazia o primeiro ano da faculdade [de publicidade, na ESPM] à noite em São Paulo. Várias vezes eu quase dormi na via Anchieta. Queria sair da faculdade e dormir perto, então arrumei um lugar para morar que podia pagar. Mas foi uma revolta na minha casa, meu pai falou para eu deixar o carro e minha mãe me demitiu. Uma pressão para eu não ir, mas eu fui. Imagina se não me ferrei [risos]. Depois de uma semana fui morar com o cara que eu namorava. Arrumei emprego numa loja, ia de carona e, depois de uns meses, comprei uma Vespa. O duro foi com relação ao namorado. Eu gostava muito do cara. E ainda tinha largado da família toda. Ele começou a se drogar loucamente, eu ia buscá-lo no meio da rua de madrugada. Foi muito triste, muito mais duro do que o acidente. Até que chegou uma hora em que fui para a Itália. Fiquei um ano e meio morando lá e só voltei no dia em que esqueci o cara.
Você falava com sua família?
Enquanto eu morava com ele, não. Quando eu fui para Itália, sim. Hoje minha relação com eles é ótima, meu pai é superfofo. Ele nunca foi de falar muito, mas tem um silêncio aprovador. Minha mãe é mais ativa, é muito ligada. Mas durante muito tempo ainda foi delicado. Depois foi melhorando. Quando fui morar na Itália, teve uma época em que eu chorava de tristeza todos os dias.
Como era a vida lá?
Fui para passar duas semanas e estudar italiano. Quando vi que ia ficar, comecei a trabalhar. Fazia faxina numa editora. Eu era péssima [risos]. Depois, fui trabalhar com um velhinho de 90 anos. Ele fazia as coisas dele, só que caiu e não descia mais escada sozinho e não tinha elevador no prédio, então ficava o dia inteiro em casa. A filha começou a ficar com medo de largá-lo lá e me pagava para ficar com ele. Só que eu não tinha nada para fazer, ficava olhando para a cara dele e ele me xingando, “Eu não preciso de você!”. Velhinho ranzinza [risos]. Uma vez catei o jornal e comecei a ler para ele. Ele gritava para eu parar. Até que um dia, em vez de me mandar parar, ele começou a corrigir minha pronúncia. A moça que cozinhava para ele ficou doente e a filha estava de viagem marcada, saindo de férias naquele dia. Eu não ia matar o velhinho de fome. O homem comia todo dia a mesma coisa, então tive que cozinhar pra ele. Comecei a mudar as refeições do velhinho e não é que ele começou a ficar forte? Às vezes eu estava na minha casa e ele me ligava: “Você não quer vir para cá?”. Começou a ficar amoroso. Depois de um ano, se a filha dele quisesse mexer no cofre tinha que pedir a chave pra mim. Foi esse homem que fez com que eu decidisse fazer psicologia. Eu fui embora da Itália, não deu um mês, ele morreu [Mara se emociona].
É interessante que você tenha cuidado de alguém antes de ser
cuidada...
Mas não pára aí. Cuidei de uma menina tetraplégica. Era um acampamento, tinha umas 90 pessoas, entre crianças e adultos, ou com deficiência ou filho de presidiário. Tinha que ter algum problema para ir parar lá. Mas era superlegal, na praia. Eu cuidava de um chalé com dez pessoas, mas tinha que dar atenção especial à Paula, que era tetraplégica.
Você teve mais algum preparativo?
Tive vários. Muita gente com que eu convivo hoje já conhecia. Em 1992, quando trabalhava no Vale do Anhangabaú, uma amiga me falava de um “cadeirante” lindo, que fazia direito na São Francisco. Uma vez, acho que ele estava indo encontrar minha amiga, e eu saí do trabalho e dei de cara com ele. Rolou uma empatia mútua e a gente começou a sair. Quando me apaixonei por ele, eu sempre pensava: “Se eu ficar paraplégica acho que morro, eu jamais vou conseguir viver assim”. Eu lembro claramente de formular esse pensamento e outros, como: “Por que eu fui me apaixonar por um cara que não anda?”.
Como você era na infância?
Eu lembro que eu era apaixonada por piruetas, ficar de cabeça pra baixo. Vejo muitas fotos minhas pendurada em árvores. Sempre tive uma relação aventureira com meu corpo.
Você se sente bonita?
Sim. Mas, como toda mulher, tem dia que não. O que te faz sentir bonita hoje? Eu acho que eu era bonita antes do acidente, de corpo, de rosto e de jeito. Mas é claro que, sem se mexer, você perde. Porque muito da beleza está no charme dos movimentos. Mas ganhei muito na expressão facial. É pelo olhar, pelo sorriso que me expresso. Me acho bonita, porém parada [risos].
A beleza é tão importante quanto era antes?
A beleza expressa o cuidado que tenho com o corpo. Os exercícios que faço, o que como, a forma que penso. A minha atenção aumentou. O que diminuiu foi a expectativa de me encaixar num padrão de beleza totalmente tradicional. Todo mundo já tem uma expectativa tão baixa com o corpo das mulheres com deficiência que eu acabo superando. Mas é muito mais preocupante saber se ele está saudável ou não.
Você transa normalmente e consegue gozar? É tudo igual. Logo depois do acidente, ficava mais preocupada se rolaria ou não do que se voltaria a andar [risos].
É um prazer mental?
É físico também. Eu sinto diferente, fica mais gostoso assistir, talvez pra muita gente seja assim, mas a intensidade da libido não muda. Tem locais do meu corpo que sinto, mas não sei exatamente onde é. É bom que meu parceiro seja forte porque ele tem que me segurar e mexer pelos dois. Como eu namoro já há algum tempo, ele conhece as posições em que eu consigo me mexer mais. É engraçado porque às vezes ele fala: “Pára de se mexer que eu vou gozar”. O corpo entra numa onda de movimento e eu falo: “Não acredito que eu estou ouvindo isso!”. Só não trepa quem não quer [risos].
Você pode ter filhos?
Normal.
Será que precisaria de anestesia?
Não sei. Mas, quando eu fiz o enxerto na perna queimada, o médico tirou um pedaço de pele da virilha para colocar no buraco. Eu pedi para ele não dar a anestesia para ver o que acontecia. Ele começou a cortar e eu sentia aquela dor que eu te falo, com uma grande intensidade, mas suportável. Olhava tudo. Quando foi colocar a pele na perna, ele queria porque queria dar a anestesia. Eu puxava a perna por reflexo, movimento involuntário. Ele deu anestesia local, e eu não parei de puxar porque quem fazia o movimento era o músculo da coxa. Foi só para acalmá-lo [risos].
Você passa a imagem de ser uma pessoa que se motiva em ensinar os outros a seguir em frente. É uma imagem verdadeira?
É. Eu tenho a história de vida, mas não sou do tipo que fica: “Vamos lá. Bola pra frente que atrás vem gente”. Minha atitude é que desperta nas pessoas essa sensação. Elas vêem uma alegria de viver numa situação em que, segundo o parâmetro delas, era para querer morrer.
Existe a chance de você voltar a andar?
Para mim você vem perguntar? Uma das piores coisas que acontecem com a pessoa que fica paralisada é que a primeira coisa que ela ouve de um médico, que teoricamente tem o poder da informação, é que não vai poder mais fazer certas coisas. Aquilo vira uma verdade. Quando eu estava no hospital, conheci um cara que tinha sofrido um acidente gravíssimo, ficou meses tetraplégico, sem mexer nada, e depois de um ano voltou a andar, sem uma sequela. Essa é uma das histórias, mas conheço vários casos de recuperação desse tipo. Eu tive uma lesão muito grave, mas nunca senti que fiquei tanto tempo quase morrendo. Quanto mais trabalho faço, mais conectado eu sinto meu corpo. Para os outros não é óbvio, mas para mim, que estou no dia-a-dia, eu sei que é uma evolução rápida, constante e surpreendente. Todo dia eu vou dormir e deixo o chinelo ao lado da cama. De repente... [risos].