Aos 65 anos, a atriz prova que é tão diva quanto real e fala de política com a mesma força com que fala de beleza, envelhecimento e da importância de mais papéis para latinas no cinema
Quando o júri da competição oficial do Festival de Cannes 2016 anunciou a vencedora do prêmio de melhor atriz no último dia 22 de maio, em vez da favoritíssima Sônia Braga ser chamada, foi o nome da filipina Jaclyn Jose, de Ma’Rosa, que se ouviu no Palais des Festivals. E uma sonora expressão de surpresa e decepção ecoou não só entre a imprensa que cobria o evento, mas também entre muitos do mercado de cinema.
Depois de estar na Croisette com Eu te Amo (1981), O beijo da Mulher Aranha (1985), Rebelião em Milagro (1988) e novamente com O beijo da Mulher Aranha, em sessão especial no Cannes Classics (em 2010, para comemorar os 25 anos do longa), a consagração de Sônia escreveria novo capítulo da história da atriz em Cannes. Não foi desta vez, mas engana-se quem afirma que Sônia perdeu algo. Ao contrário, a atriz paranaense que nos anos 1970 se tornou símbolo da beleza da mulher brasileira nunca foi tão vencedora. Ao longo do festival, ouviam-se as pessoas se derramarem para a eterna Gabriela, cantarolarem o tema da novela em vários idiomas e celebrarem seu retorno ao cinema brasileiro. Mais do que isso, Sônia foi descoberta pelo público mais jovem, que se surpreendeu ao ver a vitalidade de uma atriz de 65 anos na tela grande.
Clara, sua personagem, é uma respeitada jornalista especializada em música. Já aposentada, ela vive tranquila em um pequeno prédio em Boa Viagem, no Recife. Clara entra em guerra contra os donos de uma construtora que comprou todos os apartamentos de seus vizinhos e faz de tudo para convencê-la a vender o seu também. Mas a personagem, que já enfrentou problemas mais sérios, como um câncer na juventude, é altiva, sagaz, teimosa e sábia. Para completar, ela lida com o sexo com a liberdade de quem viveu a revolução sexual. “Há muito de Sônia em Clara. E muito de Clara em Sônia. Já não sei onde começa uma e termina a outra e isso é maravilhoso”, comentou o diretor pernambucano Kleber Medonça Filho.
A atriz, que vive em Nova York e tem uma casa em Niterói, falou à Tpm sobre política, Hollywood, a falta de papéis para latinas no cinema e o desafio de envelhecer.
Faltam papéis para mulheres fortes como a Clara no cinema brasileiro? Não sei se faltam papéis fortes para mulheres fortes. Faltam talvez papéis para um certo tipo de mulher. Muitas mulheres, até mais velhas do que eu, têm sido protagonistas em filmes americanos, ingleses, australianos, sem problema nenhum. Acho que, sobretudo, faltam roteiristas como o Kleber Mendonça Filho.
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Você é uma atriz latina. Como é enfrentar o mercado internacional? Não me lancei propositalmente no mercado internacional. O fato é que eu ia filmar Eu Sei que Vou Te Amar com o Arnaldo Jabor. Estava tudo certo, já tínhamos até trabalhado no roteiro. Estava acabando de filmar O Beijo da Mulher Aranha (de Hector Babenco, 1985). Entre um e outro, fui para os Estados Unidos ficar um tempo. Quando estava lá, o Jabor, que inicialmente ia filmar comigo e com o José Wilker, resolveu filmar com dois atores mais jovens. Achei ótimo porque fiquei com tempo e decidi fazer algo que nunca tinha feito na vida: estudar inglês.
E assim começou sua trajetória americana? Sim. Fiquei lá e pensei: “Quando precisarem de mim, me chamam”. Estava totalmente dentro do mercado brasileiro. Fui ficando, estudando inglês e a ideia era voltar para o Brasil. O tempo foi passando e ninguém entrou em contato... Aí fui para Cannes, para participar do júri. No festival, recebi um convite do Robert Redford para participar do Rebelião em Milagro (1988). Fiquei um tempo em Los Angeles. Até o que o Paul Mazurski me chamou para fazer Luar Sobre Parador (1988). Depois de filmar, fiquei um tempo em Porto Seguro, sem receber convite de ninguém. Eu tinha ficado muito amiga do pessoal do Milagro e eles me ligaram chamando para ir a Sundance, que estava ótimo, que eu devia ir esquiar... Pensei bem e fui!
O que falta para as atrizes latinas terem mais espaço em Hollywood? Faltam roteiros. Faço parte de uma fundação que dá bolsas de estudos para estudantes hispânicos, para se tornarem cineastas. Um dia, em uma festa, falei para um dos fundadores que eu queria sim fazer uma prostituta. O problema não é fazer um destes papéis, mas sim a ideia de que é preciso fazer o papel principal. O Al Pacino não fez o Scarface? E se ele entrasse em cena só para cheirar uma fileirinha e saísse? Sendo personagens interessantes, qual o problema?
Até mesmo para atrizes americanas há a questão de não se escreverem tantos bons papéis, vide o caso da Viola Davis, que, quando se tornou a primeira atriz negra a ganhar Emmy de melhor atriz dramática, agradeceu aos roteiristas por criarem papéis como o dela. Sim. E houve este ano, com o Oscar, a polêmica de que não existem papéis para as mulheres negras, as hispânicas foram citadas de leve. Que tal a América Latina escrever mais papéis para os latinos? A gente desenvolver um cinema que seja uma indústria de verdade. Cinema é indústria. Temos que promover mais festivais no Brasil, que realmente atraiam público. Não tenho uma fórmula e não tenho cabeça de produtora. Se tivesse, produziria meus próprios filmes. Mas uma coisa eu sei: no dia em que a América Latina tiver uma indústria de cinema, evidentemente vamos ter bons roteiristas. Precisamos de bons roteiristas.
Falta ao brasileiro mais compreensão da importância da produção cultural? Sim. Este é um ponto crucial na sociedade brasileira. Entende-se muito pouco que o cinema, e a cultura em geral, além do valor simbólico, é uma área que movimenta milhões de reais e gera muitos empregos. Falta educação e informação.
O protesto que a equipe de Aquarius fez na sessão de gala em Cannes, quando exibiu cartazes falando que um golpe está em curso no Brasil, foi muito apoiada, mas também muito criticada. Como foi para você? Foi uma situação estranha porque, para o Brasil, eu estava até então calada. As pessoas estavam me cobrando, perguntando se eu não ia me posicionar, se eu ia ficar calada. Mas se vocês virem meus posts antigos do Facebook, as minhas entrevistas, vocês vão saber quem eu sou.
Kleber Mendonça Filho comentou que foi um protesto discreto. Mas que os pequenos gestos podem ter muita eficácia, tocar em pontos profundos. Exatamente. A primeira vez que vi alguém fazendo isso foi o Maurício Lima, o fotógrafo brasileiro que ganhou o prêmio Pulitzer. Foi muito lindo. Logo depois encontrei com ele em NY e tivemos uma conversa incrível sobre este momento em que o Brasil está. Este movimento está vindo em pequenas ondas. É inadmissível, em uma manifestação em um país democrático, a polícia atacar a imprensa! E viva a democracia! Foi muito difícil a conquista dela, é inadmissível perder isso.
Você tem 65 anos. Como lida com a questão do envelhecimento? Tem medo de envelhecer? Veja bem. Qual a outra opção? Morrer. Se você não quer envelhecer, você quer morrer. Em relação a esta questão, tenho um mantra budista, muito zen isso o que vou falar. A gente se distanciou tanto da natureza, em tantos aspectos. Quando a gente vê uma árvore bonita, pergunta: quantos anos tem a árvore? Alguém responde: “10 anos”. Aí vê outra árvore e alguém diz que ela tem 300 anos. A gente diz: “Nossa! Que coisa linda!”. Onde é que a gente perdeu este sentido em relação à natureza?
Precisamos aprender a envelhecer e a encontrar a beleza deste processo. Sim. Para mim, o importante é ter saúde e fazer prevenção. Temos cuidar da alimentação, dos seios, do útero, da mente. Mas como esta transformação vai ocorrer para cada um? Não digo que não vamos ter conflitos com isso.
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Qual seu maior conflito? É que a vida a gente só vai viver uma vez. Não dava para a gente poder ensaiar a vida? A gente ensaiava uma vez e já sabia o personagem. Mas a vida não é assim. Você é quem vai determinar como quer ser feliz. Mas voltando à estética: a questão da aparência é muito forte no Brasil e nos Estados Unidos. Isso me lembra o filme Brazil (de Terry Gilliam, 1985), em que a mãe do personagem principal terminava mais nova do que começou, toda esticada, com o sapato na cabeça. É complicado lidar com isso.
Você já foi a várias cerimônias de Oscar, Globo de Ouro, Cannes... Como é estar no centro das atenções nestes eventos? Já foi a um casamento, à tarde, em Sorocaba? É a mesma coisa! Aquela maquiagem, salto alto, vestido no meio da canela...às quatro da tarde. Na realidade, existem duas Sônias. Existe a pessoa que eu sou e existe a que vai para a première. Eu jamais me apaixonaria por esta última porque ela é outra. Se pessoa se apaixonar por mim e por ela, ao mesmo tempo, não vai funcionar.
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Imagem principal: Jean-Paul Pelissier / Reuters