por Carol Ito

Eliza Capai fala sobre seu documentário premiado em Berlim, que mergulha na luta dos estudantes secundaristas, e indica filmes inspiradores

Entre 2015 e 2016, o Brasil viu ruas e escolas serem ocupadas por estudantes secundaristas de vários estados, que exigiam melhorias na educação pública. A efervescência daquele momento chamou a atenção de Eliza Capai, documentarista carioca criada em Vitória, que se preparava para gravar uma série sobre educação. Em busca de material para sua pesquisa de personagens, ela decidiu entrar em uma ocupação de estudantes no prédio da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). "Pirei e acabei passando a noite ali dentro. Quando saí, pensei: preciso fazer um filme sobre isso”, conta.

O resultado pode ser visto no documentário Espero tua (re)volta que, ao mergulhar na luta dos estudantes, também reflete sobre a história recente do país. A trama é contada sob o ponto de vista de três ex-secundaristas que militam pela educação pública e discutem questões relevantes de sua geração. “Eles dialogam sobre lugar de fala, a luta antirracista, feminismo, questões LGBTs. É um movimento muito rápido, dinâmico e complexo”, avalia Eliza, que também dirigiu os premiados Tão longe é aqui (2013) e O jabuti e a anta (2016).

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Depois de percorrer mais de dez festivais nacionais e internacionais e levar o prêmio da Anistia Internacional e Prêmio da Paz no Festival de Berlim deste ano, o documentário estreou por aqui no dia 15 de agosto. “No momento em que há uma criminalização da cultura e do setor artístico, queremos mostrar que não vamos parar de fazer filmes, ocupar mais espaços”, diz Eliza, formada em jornalismo com especialização em documentários pelo OpenDocLab do MIT (Massachusetts Institute of Technology). Espero tua (re)volta ficará disponível de forma gratuita para quem quiser organizar uma sessão aberta, além de ter entrada gratuita para estudantes de escolas públicas em algumas salas de São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Belém e Fortaleza (confira a lista de salas aqui).

Nesta entrevista, Eliza comenta sua imersão no movimento dos secundaristas, elege documentários imperdíveis e ainda relembra a histórica capa da Trip com Julian Assange, fundador do WikiLeaks, clicada por ela.

Tpm. O que mais chamou sua atenção no movimento dos secundaristas?

Eliza CapaiQuando entrei na ocupação da Alesp, em 2016, vi aqueles corpos franzinos cercados pela guarda municipal e fiquei assustada. Como o governo manda um aparato de força totalmente desproporcional em cima de jovens que o Estado deveria educar? Não só desproporcional como caro. No filme, uma cena se repete. Toda vez que estoura uma bomba em uma ocupação, um aluno fala: “ foram 500 merendas explodindo”. Também fiquei impressionada em ver como eles conseguiram unir estética e política em um movimento tão complexo.

“Toda vez que estoura uma bomba em uma ocupação, um aluno fala: 'foram 500 merendas explodindo'”
Eliza Capai, documentarista

O que seria essa junção de estética e política? Eu entendi, por exemplo, que a frase “meu corpo, minhas regras” não era só um slogan; estava no corpo, na estética das meninas. Elas usavam a roupa que queriam, mesmo cercadas por homens da guarda municipal. A música também tinha um papel importante, usada tanto nos momentos de protesto como de diversão dentro das ocupações.

Como foram as gravações? Eu e o fotógrafo Bruno Miranda entramos para gravar em duas ocupações, fizemos muitas manifestações de rua, fomos ao Congresso da UNE [União Nacional dos EstudantesCarol Quintanilha/Divulgaçãoeditarremover. Metade dos vídeos são de arquivos cedidos por colegas que acompanharam as ocupações.

Como foi a escolha dos ex-secundaristas Marcela Jesus, Nayara Souza e Lucas Penteado como protagonistas? Entrevistei jovens de diferentes partes do Brasil e entidades de luta. São três protagonistas que dialogam sobre o lugar de fala, a luta antirracista, o feminismo, as questões LGBT. É um movimento muito rápido, dinâmico e complexo e queria que o filme mostrasse essas características. A gente vive num momento de polarização, que é a simplificação dos lados, e precisamos entender quão complexas são as coisas.

O filme também mostra o envolvimento dos secundaristas com temas ligados a raça e gênero. Em quais situações essas questões apareceram? As mulheres começaram a perceber que, enquanto se encarregavam da cozinha da ocupação, os homens ficavam com a segurança. Ao reproduzir o machismo, elas logo se deram conta e passaram a discutir e transformar isso. No começo do documentário, as meninas estão na cozinha e, no fim, é o contrário. Também ouvi muitos relatos de meninas que antes alisavam o cabelo e, depois das ocupações, passaram a assumir o afro, a raspar a cabeça. São muitas descobertas feitas no coletivo.

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Além do diálogo, eles aprenderam também a manter o afeto, mesmo em situações de violência. O afeto era uma forma de resistência? Sim. Tinha a questão do zelo, da transformação daquele ambiente da escola, muitas vezes hostil, cheio de grades e com muitas regras. Ao estarem todos ali, com a mesma finalidade, eles começaram a descobrir formas de cuidar daquele espaço. Claro que havia discussões em assembleias gigantes, mas o afeto permitiu que abrissem diálogos muito mais amplos do que eles jamais tinham conseguido. O filme é muito didático sobre quais foram as conquistas e os traumas do processo. Juntos, eles conseguiram barrar a reorganização das escolas [em que quase cem unidades poderiam ser fechadas] em São Paulo.

“A gente vive num momento de polarização, que é a simplificação dos lados, e precisamos entender quão complexas são as coisas”
Eliza Capai, documentarista

Como começou sua relação com documentários? Acho que vem de uma curiosidade muito grande de entender as coisas. Quando estudei jornalismo, percebi que boa parte das pessoas que lidavam com texto ficavam nas redações e eu tinha muita vontade de viajar, vivenciar outros lugares. Eu comecei com foto e depois fui para o vídeo. Sou um pouco tímida e a câmera me permite fazer perguntas que não conseguiria sem ela.

Falando em foto, você fez o retrato do Julian Assange, fundador do WikiLeaks, que virou capa da Trip, em 2011... A Natalia Viana [na época, representante do WikiLeaks no Brasil] me chamou para gravar o piloto de uma série sobre as mídias independentes que ajudaram na investigação sobre os cabos confidenciais das embaixadas. Fomos até a casa do Assange e descobri que dali sairia uma matéria para a Trip e que eu faria a foto de capa. Fazia tempo que eu não fotografava, estava trabalhando com vídeo, fiquei bem desesperada [risos]. Eu morei por quase um mês na casa do Assange [na Inglaterra] para editar todo o material. Essa experiência foi transformadora, porque vi um grupo pequeno de pessoas fazendo um barulho mundial enorme.

Os três documentários que inspiram Eliza Capai:

Jogo de Cena (2007), de Eduardo Coutinho

Como boa jornalista com baixa autoestima, eu achava que entrevista era algo menor no cinema, mas seu trabalho me fez assumi-las como foco. Foi Jogo de Cena (2007), em que o cineasta questiona a força do real em contraposição com a ficção, que me deu coragem de fazer documentários.”

Era o Hotel Cambridge (2016), de Eliane Caffé

“O filme surge do encontro de várias redes entre pessoas de dentro e fora da ocupação do hotel Cambridge. Eu fazia documentários de forma solitária, sem verba, e percebi a importância destas redes para contar uma história – o Espero tua (re)volta tem muito disso.”

For Sama (2019), de Waad Al-Kateab e Edward Watts, sem data de estreia no Brasil

"No momento, estou apaixonada pelo For Sama [de Waad Al-Kateab e Edward Watts, melhor documentário em Cannes, em 2019). Fala da guerra na Síria, do feminino e da maternidade de uma forma que eu nunca tinha visto. É sobre extremos humanos: de um lado, a guerra, absolutamente humana, e, do outro, a solidariedade, que também é."

Créditos

Imagem principal: Divulgação

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