Marília Gabriela lança o livro Eu Que Amo Tanto
Marília Gabriela se intrigou com histórias de mulheres que amam muito mais do que deveriam, ouviu-as e publicou os relatos em Eu Que Amo Tanto
Quando um amor arrebatador atravessa a linha que separa o saudável do patológico? A jornalista e atriz Marília Gabriela se interessou por histórias de mulheres que amam além de qualquer limite e caem de cama por causa de um sentimento não correspondido. Através do Mada (Mulheres que Amam Demais Anônimas), ela encontrou personagens que se reúnem para desabafar em grupo. Marília ouviu, então, 13 mulheres que vivem às voltas do limite entre a sanidade e a loucura – e que muitas vezes se perdem entre os sentimentos de amor e de posse.
Publicou os relatos no lançamento Eu Que Amo Tanto. “Já que na atualidade todo mundo reclama de falta de amor, essas mulheres passaram para o lado de lá, para um estado patológico”, reflete. Elas não só contaram as suas vidas e mazelas para Marília, como ficaram muito bonitas sob o olhar do fotógrafo português Jordi Burch, que as eternizou em momentos íntimos e do dia-a-dia.
Tpm. Como são esses encontros do Mada?
Marília Gabriela. Fui a uma dessas reuniões no bairro do Sumaré, em São Paulo. As mulheres contavam suas histórias na frente de pessoas que sofrem do mesmo mal, desse amor obsessivo.
No geral, como são as relações delas? São histórias longas e obsessivas, relacionamentos que não tiveram um fim e que geram desespero por causa da falta de controle. É uma necessidade de posse: tenho essa pessoa em sua totalidade, domino os seus horários, os seus dias, e é só a mim que ela vai ver e amar. Quando esse domínio começa a se desfazer, é que elas se desesperam.
Elas enxergam esse sentimento como uma doença? A maioria já começa a entender que o que sentem não é amor, mas doença. Por isso procuram ajuda. Muitas tomam remédios, têm fases de depressão terríveis a ponto de cair de cama, não tomar banho nem trabalhar. Tentei, no texto, acentuar as cores do drama e o humor dos relatos.
E os homens têm uma parcela de culpa nesse amor que vira doença? Estão embutidos nessas relações homens que permitem ser amados demais. Muitos já estão em outra história, mas fazem a manutenção desse sentimento. Seja por pena, comodismo ou apreciação. O livro vai mostrar também que são mulheres comuns. É a manicure, a bombeira, a modelo, a jornalista. Elas estão no cotidiano, cruzam o nosso caminho sem nos darmos conta.
Vai lá: Eu Que Amo Tanto, Marília Gabriela (ed. Rocco, R$ 75)
Tpm+
Ouça a entrevista com Marília Gabriela e leia trecho do livro Eu Que Amo Tanto.
O sexo
"Sou auxiliar de limpeza de uma cooperativa de teatro. Trabalho nos escritórios. Limpo, arrumo, ajeito, ajudo em reuniões, esvazio cinzeiros, sirvo cafezinho, mas devia mesmo era estar no palco. Eu sou truqueira que só! E, assim como o mágico, atriz faz truque, não é não? Tenho um filho lindo de nove anos, e ele foi meu primeiro truque. Como aquela flor que sai do meio de um lenço vazio, sabe qual? Pois é. Eu fiz meu filho só pra segurar uma pessoa. E só chamo assim de pessoa essa pessoa, porque estou tentando nunca mais gostar dele, nunca mais dizer seu nome. É muito difícil. Agora mesmo eu estou atolada de remédio, senão não estava aqui falando. Ficava só sentada no banheiro, ali, escondidinha, caída, chorando, sem vontade de fazer nada, na paranóia, só pensando, pensando. Na última recaída, quando comecei a dizer o nome dele e a me lembrar da gente, fui parar no psiquiatra e comecei a tomar remédio. Demoro pra pegar, às vezes só funciono no tranco, mas tenha paciência porque eu vou sair dessa! Tô que tô atolada mesmo de pílula e de saudade e de remorso. O que não se faz por amor!
Sou de um lugar bem longe da civilização. Meus pais eram, como chama...trabalhadores rurais. Aí uma família, uns conhecidos que tinham fazenda por lá, disseram que eu não tinha futuro no meio do mato e prometeram me dar coisa melhor em São Paulo. Eu estudava e cuidava das meninas, né? Assim, tipo babá. Estudava, era uma família, me tratavam como filha também, e, como filha, fui estudar, portanto, para mim, ela era como uma mãe, como uma segunda mãe. As meninas e eu éramos irmãs de ketchup, sabe como? De sangue não, né? Quem vai se iludir? Irmãs de ketchup mesmo, já está bom. Grudadas.
Só que eu cresci, e parece que eles não esperavam. Vai ver queriam que eu ficasse como um cavalinho, um pônei, ou uma daquelas árvores anãs...bozo, bobo, bonzo ou coisa assim, criança para sempre. Com dezenove anos, entrei naquela fase de querer namorar, de querer curtir. Meus pais tinham dado ordem para eles serem rígidos, mas chega a hora em que você quer, poxa, é muito forte aquele desejo, aquela vontade que vem. Aí eu comecei a bater de frente com a...com ela...a dona da casa. Começou a ter discussão e foi quando ela não concordou e resolveu me devolver aos meus pais. Só que eu já tinha me envolvido, já namorava escondido com esse...com essa pessoa, a mesma de hoje, quando estou com 31.
Praticamente perdi a virgindade com ele. Praticamente porque, não vou mentir, houve um outro carinha, mas era só namorico no mesmo bairro, até a família adotiva aceitou, mas era uma inexperiência só. Chegava na hora, ele também era virgem, nós dois uma ignorância das coisas, dos fatos da vida, não tinha aquela coisa...Quer saber, era um desastre, ninguém sabia o que fazer. Aí esse outro entrou na história porque era amigo, e eu acabei me interessando, ou seja, conheci essa pessoa através do meu primeiro namoradinho. No começo, eu nem tinha muita atração por ele, mas aí aconteceu, ele me ensinou, eu comecei a ter relações e foi assim. Depois, vieram os suores, as tremedeiras, a vontade de ver e de fazer sempre, o riso fácil, o calor úmido lá embaixo, e me mandaram de volta para o interior. Mas eu viciei ele, isso eu fiz! Então ele falou “volta você vai viver na minha casa comigo e com meus pais, te dou uma ajudinha, você continua estudando coisa e tal”, nananam, e eu voltei. Eu devia mais era ter acreditado quando ele falou que não queria compromisso. A gente namorava, mas ele me avisou “olha, continua seus estudos, vive aqui, mas tem de ser assim, eu tenho minha liberdade, minhas amigas, meus amigos. Eu topei, né? Cu de cobra, sempre por baixo, topei. Só que eu sou ciumenta, eu tenho um temperamento, não dá pra ver porque eu to mesmo atolada de remédio.
No começo, quando a casa dele enchia de amigos, eu saí e fui tentar reatar a amizade com as meninas com quem trabalhei. Não deixaram, as mães proibiram, como se eu fosse uma doença contagiosa. Fiquei mal. Voltando atrás, acho que esse homem representou tudo para mim pela forma de me acolher, de me cuidar. A mãe dele me recebeu, tudo, acho que daí vem essa dificuldade de sair da vida dele. Os outros não me perdoaram nunca por eu não continuar brincando de boneca e não querer ficar naquele mundinho de escola, casa, casa, escola. Era muito ruim, os colegas passeavam, eu na sala de aula totalmente por fora dos assuntos. Não concordei, e, depois, eu estava mesmo apaixonada. Eu completei o terceiro colegial, no entanto...O que a gente não faz por amor, né? Tô parecendo confusa? É o remédio, mas eu preciso, senão eu vou atrás e dou aquele vexame. Ele me acolheu, a gente dormia no mesmo quarto...
Mas, levar amiguinha para o nosso quarto e eu ficar do lado de fora porque tinha que respeitar a liberdade dele? Eu não tenho sangue de barata, ah não, isso não tenho mesmo.
Na época boa, a gente dançava muito. Música eletrônica. Ia em barzinho...Olha, esse homem sempre foi bom e fiel. A culpa foi minha. Mas ele provocava. Dizia que, na filosofia dele, namoro e amizade era tudo a mesma coisa. E me chamava de burra. Sempre.
Só que quando a porta do quarto fechava e eu tirava a roupa e a boca dele secava enquanto as minhas ficavam molhadas, eu mostrava o que era inteligência e ouvia que ele me amava. Eu engravidei para segurar esse homem. Hoje eu amo meu filho. E ainda me lembro do frio no inverno, nós três comendo pipoca, brincando juntos, assistindo filme, a pessoa parecia tão feliz!
Ele tem outra já faz oito anos. Foi embora de casa e eu fiquei com a mãe dele Estou lá até hoje. Começou com muitas brigas, muito ciúme meu, sempre meu. Eu bem gostaria de perguntar se, com a mulher com quem ele está vivendo, também é amizade sem compromisso. Essa explicação eu ainda queria ter. Depois do filho, eu comecei a regular sexo. Segundo truque. Meu poder era esse, o calor no meio das pernas, o bico do peito duro, a rigidez da minha bunda, fazer ele gemer com a cara enfiada em meus cabelos pra ninguém ouvir no quarto ao lado. Isso era poder. A minha inteligência aprimorada. Comecei a não dar água no meio do deserto. No começo, funcionou. Mais tarde, passei a abraçar o nada. Ele já tinha outra. Meu terceiro truque foi tomar meia garrafa de desinfetante. Ele ficou desesperado, cuidou de mim, só que, a partir daí, começou a esconder tudo. Perdi o controle, entende? Perdi o controle, e isso me enlouqueceu.
Deu início uma seqüência de disse-me-disse, vizinha que falou que ele contou para amiga que era infeliz comigo, eu mais e mais infeliz, até que ele foi embora viver com a namorada. Às vezes eu ainda conseguia levar ele pra cama quando vinha visitar a mãe. Depois, nem isso. Já não me deseja.
Um psicólogo que tive juntou nós dois numa sessão e contou que meu filho foi planejado. Ele nem acusou recebimento. Não cobrou nada de mim. Ficou normal. Alguns meses atrás, fui bater em sua porta porque me desesperei quando soube que ele ia na mesma festa de casamento que eu, só que levando a outra. Gritou e me mandou embora.
Esperta, tentei mais um truque. Sentei na calçada por onde ele tem que passar e comecei a chorar. Pois ele passou por mim e não parou.
Acho que meus truques acabaram. De qualquer forma, quando estou bem, presto atenção em nosso filho e não penso nele. Meu menino gosta dessa atenção que nunca teve, e sorri gostoso e me dá um quentinho aqui por dentro que eu nem imaginava ser capaz de sentir por outro alguém. Quando vem saudade, ou raiva, vou a uma loja e uso o cartão de crédito que ele deu para as nossas necessidades. Escolho, escolho e compro uma coisa bem cara para mim, imaginando o que é que ele deve dar para a outra.
E me sinto apaziguada."