Duas mulheres, uma tela e pouco avanço

Tpm faz uma análise dos programas eleitorais de Dilma Rousseff e Marina Silva

Tpm faz uma análise das performances de Dilma Rousseff e Marina Silva em seus respectivos programas eleitorais e conclui: ter duas mulheres na disputa pela presidência da República não serviu para trazer as questões femininas para a discussão política - ao menos na TV


Lugar de presidenta é na cozinha do Palácio do Planalto. Ao menos é assim que Dilma Rousseff (PT) aparece no primeiro programa de TV, exibido em 19 de agosto. Diante de milhões de espectadores, a líder máxima do país fatia tomates e cozinha macarrão numa frigideira vermelha. De terninho azul-turquesa, incólume aos respingos de azeite, e topete sempre firme, ela é apresentada como uma mulher que “gosta de cozinhar, de tratar do jardim e de cuidar da residência oficial com o esmero de qualquer dona de casa”. 

A receita do espaguete genovês aparece logo mais no site da campanha petista, que tenta viralizar o apelido #dilmapalmirinha. Nos dias seguintes, jornais e revistas gastaram tinta para analisar os dotes culinários da presidente. Lembraram que sua fama no fogão é “péssima” e que ela “passou vexame ao tentar fazer uma omelete” no programa de Ana Maria Braga três anos antes. A origem do espaguete, uma adaptação do carbonara que substitui bacon por linguiça, também viraria tabu: vem de Roma ou de Gênova, como alega o comitê dilmista? 

Vale tudo para encher linguiça no horário eleitoral. Num pleito em que três mulheres concorreram à Presidência, o “politiquês” é mesmo macarrônico. Corte a segurança pública em finas promessas. Acrescente pitadas de educação e saúde. Descasque o casamento entre homossexuais. Frite a autonomia do Banco Central e tempere com pré-sal a gosto.

O que ficou em banho-maria, ao menos nas peças televisivas de Dilma e Marina (as favoritas até o fechamento desta edição), é uma plataforma sólida para mulheres. Nenhuma delas levou ao ar bandeiras históricas do movimento feminista, como o combate à violência doméstica, a legalização do aborto e a participação das mulheres em cargos de liderança (inclusive no setor público). “Que programas efetivamente estão sendo pensados para proporcionar uma situação de igualdade da mulher? Que ações de combate ao machismo serão implementadas?”, questiona Maíra Liguori, diretora de projetos do coletivo feminista Think Olga.

Há 82 anos, mulheres nem sequer podiam votar no Brasil. Hoje, somos a maioria do eleitorado (74,5 milhões, ou 52%) e temos duas de nós disputando o cargo mais poderoso do país. Se os “XX” da questão estão nos cromossomos, Dilma e Marina encarnam dois modelos opostos de feminilidade. O Ministério do Senso Comum adverte: a primeira é brava, “cabra-macho”. A segunda, instável e, de tão frágil, parece que vai quebrar. “As duas não passam prazer em ser mulher”, diz o publicitário Washington Olivetto. 

É como se ser mulher de menos ou de mais fosse o pecado original das duas candidatas. “Uma ‘lose-lose situation’”, diz Maíra Liguori. “Historicamente, para conquistarmos espaço no mercado de trabalho, fomos atrás de reproduzir o único modelo disponível – o masculino. E tudo o que escapa disso é criticado, esvaziado, visto como inferior. Ao mesmo tempo em que essa ‘masculinização’ nem sempre nos cai bem.” 

Em 2010, o marqueteiro João Santana afinou a fama de falar grosso que Dilma adquiriu nos tempos de ministra do então presidente Lula. Na estreia do horário eleitoral, a candidata não chegava a ser
uma Miss Simpatia, mas sorria bastante, passeava às margens do lago, brincava com o cão, o labrador Nego. Um dos jingles daquela campanha cravava: “Depois do cara a gente vota na coroa”. O refrão mais emblemático da campanha terminava assim: “É a vez da mulher”.

Era mesmo: Dilma acabou eleita com 55,8 milhões de votos em que Marina, então Verde, com pouco mais de (10% do tempo da rival amealhou surpreendentes 19 votos. Em 2014, Marina tem reais de substituir o PT no após uma daquelas reviravoltas roteiro eleitoral que, de tão extraordinárias, soariam inverossímeis série House of Cards.

“Quantas vezes apareceu um homem na cozinha quando era presidente?”


Quando o jato do ex-governador de Pernambuco caiu em Santos, num agourado 13 de agosto, Marina apareceu abatida em todos os telejornais. Para os marqueteiros do partido, não havia muito tempo para luto. Às vésperas da estreia da propaganda eleitoral, o PSB corria para traçar uma nova estratégia televisiva, agora com a mulher à frente da chapa presidencial.

Boliche Eleitoral

Marina, ao contrário de Eduardo, dispensava apresentações. Assim como o de Dilma, seu nome era conhecido do Oiapoque ao Chuí, e sua candidatura chegou a abrir uma dianteira de 50% contra 40% de Dilma nas intenções de voto. A campanha na TV degringolou, nas semanas seguintes, para um boliche eleitoral. A petista dedicou bons minutos de seu latifúndio televisivo (11 minutos) para derrubar a adversária: “Marina vai acabar com o Bolsa Família”; “Marina não gosta do pré-sal”; “Marina ama os banqueiros”. 

Com apenas 2 minutos de TV, a candidata do PSB se apresentava como alternativa ao puxa-cabelo dos últimos 20 anos entre PT e PSDB. Os primeiros programas martelam o discurso da “nova política”. Como slogan, a frase de Eduardo Campos no Jornal Nacional, na véspera de sua morte: “Não vamos desistir do Brasil”.

Conforme ela espichava nas pesquisas, cresciam os golpes da oponente. Marina retirou do programa de governo o apoio ao casamento homoafetivo e ao projeto de lei que criminaliza a homofobia. Marqueteiros do PT também guardam na manga um discurso que ela fez como senadora, em 2002, contra transgênicos – que ela agora aceita.

Como contra-ataque, a equipe marinista encharcou a TV com um tom emocional. Com voz de choro, ela disse que nunca acabaria com o Bolsa Família e narra sua própria infância de fome, quando “tudo o que minha mãe tinha para oito filhos era um ovo e um pouco de farinha e sal com umas palhinhas de cebola picadas”. Ela nada mais é, diz em outro trecho, do que uma vítima dos “mesmos preconceitos e mentiras” que Lula sofreu no passado.

O clima bélico se estendeu aos telejornais. Marina criticou o “marketing selvagem”. Para Dilma, a presidência não era coisa para “coitadinhos”. Entre muitos sopapos, sai machucada a política para mulheres bem mais heterogêneas do que a onipresente “dona Maria” que os marqueteiros tanto querem atingir no horário eleitoral – a dona de casa que se reconhece ao ver Dilma preparando a macarronada.

Difícil imaginar uma estratégia semelhante para os pares masculinos. “Quantas vezes apareceu um homem na cozinha quando era presidente?”, questiona Daniela Andrade, transexual e feminista. Ligar a TV e ver FHC descascando batata ou Lula untando a forma do bolo: para as ativistas, isso sim seria massa.

BRASILEIRAS NO PODER: UM HISTÓRICO

Dona Maria I, conhecida em Portugal como “A Piedosa”, e no Brasil como “A Louca”, foi a primeira chefe de Estado que tivemos, proclamada rainha em 1815. Mas a presença feminina na política brasileira foi próxima de zero por mais de um século. A edição de 7 de setembro de 1928 do New York Times noticiou em 24 linhas a histórica eleição da primeira prefeita mulher do Brasil, Alzira Soriano. Na época, o voto feminino nem sequer era nacional – mas já acontecia no Rio Grande do Norte, onde ficava Lages, a cidade que a escolheu com 60% dos votos. Alzira não chegou a terminar o mandato: uma comissão do Senado anulou os votos femininos. 

Uma mulher virou senadora da República pela primeira vez 51 anos depois: Eunice Michiles era a suplente de um parlamentar da Arena (partido que apoiou a ditadura), que morreu dois meses após eleito. “Meu papel era ficar quietinha, me comportar como uma dama”, disse ela em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, em 2010. 

Em 1989, Luiza Erundina bateu Paulo Maluf, José Serra e Eymael para se tornar a primeira mulher à frente de uma capital, São Paulo. Em 1994, Roseana Sarney foi a primeira governadora eleita, no Maranhão. No dia 1º de janeiro de 2010, Dilma Rousseff tomou posse declarando que aquela seria “a primeira vez que a faixa presidencial cingiria o ombro de uma mulher”. 

Que venham as próximas.

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