'Deus é menina'

por Natacha Cortêz

Em novo livro, Valter Hugo Mãe narra história de menina de 11 anos depois da morte de irmã gêmea


Em seu sexto romance, A desumanização, o escritor angolano Valter Hugo Mãe propôs-se a escrever - em primeira pessoa - a história de Halla, uma menina de 11 anos que acaba de “ perder para a morte” a irmã gêmea. “Gêmeos parecem estar privilegiadamente acompanhados no mundo. Com a perda de um, ficarão no cúmulo da solidão”, responde à Tpm.

O trauma de Halla tem como cenário, mas ainda como “personagem excêntrica”, a Islândia. A ilha, conta Valter, entrega à menina todas as percepções que o próprio autor experimentou em suas visitas ao lugar. “Islândia é feita da sensação de solidão, mas também de abundante companhia espiritual. Apenas estão sós aqueles que não acreditam.”

Sobre sua protagonista menina, o escritor andou à procura dela “como quem procura a humanidade inteira”. A experiência de criar Halla acabou sendo um desafio de entender a si mesmo.“Sempre procuro colocar-me o desafio de entender quem não sou. Ou encontrar em alguém tão diferente uma universalidade que diga respeito à toda a humanidade. Uma menina é, ainda assim, um reduto de universalidade.”

Em comum, ele e garota islandesa têm a necessidade de construir, imaginar, um irmão morto. Quando Valter nasceu, seu irmão já havia morrido. “Precisei de o imaginar muito para gostar dele.”

Assim que começou a publicar seus romances, o autor português adotou o sobrenome Mãe. A importância do feminino em seu trabalho e a escolha do novo sobrenome, ele justifica com seu “extremo” interesse em entender as mulheres. Ainda, diz que mães são os seres mais extremos na maravilha, e nenhuma experiência será mais rente ao milagre quanto essa. “Estou convencido de que deus é menina”.

Por e-mail, Valter falou com a Tpm.

A desumanização é um livro sobre a morte? É sobre a dificuldade da vida e a vida é sempre acerca da morte. A morte também é sossego. Paz. No meu livro afloro um pouco a possibilidade de nos alegrarmos com o facto de as coisas serem finitas.

Por que uma protagonista menina, "quase criança"? Como foi a experiência de contruí-la, pensar no lugar dela? Sempre procuro colocar-me o desafio de entender quem não sou. Ou, de outro modo, encontrar em alguém tão diferente uma universalidade que diga respeito a toda a humanidade. Uma menina é, ainda assim, um reduto de universalidade. Ela contém em si muitas das questões fundamentais da humanidade. Gosto de pensar que podemos sempre encontrar pistas para a grandeza de existir em todas as pessoas, novas ou velhas, profundamente inteligentes ou distraídas do conhecimento. Andei à procura desta menina como quem procura a humanidade inteira. É sempre isso que faço.

E qual é o fascínio em falar de irmãs gêmeas? O que essa relação pode trazer que outras não trazem? Queria há muito falar de gémeos. Não sabia quando nem como. Surgiu agora a oportunidade. Era irresistível para acentuar a solidão e a perda paulatina da sensibilidade. Os gémeos parecem estar privilegiadamente acompanhados no mundo. Com a perda de um, ficarão no cúmulo da solidão. Sensibiliza-me muito essa ideia.

Acredita que quando um dos gêmeos morre, a solidão, ou até mesmo a morte, é uma experiência mais sentida entre gêmeos? (Lembrei deste trecho: "Mais tarde, ouvia-a alertar o meu pai. Em alguns casos de morte entre gémeos o sobrevivo vai morrendo num certo suicídio. Desiste de cada gesto. Quer morrer. Dizia ela.") Acredito em tudo. Que por vezes acontece assim, outras não. Eu, que sou romântico porque espero bons sentimentos das pessoas, prefiro achar normal que a morte de um gémeo seja, ao outro, de uma violência apenas comparável à perda dos filhos.

Por que a Islândia como cenário? Aliás, ela nãó é somente cenário, não? A Islândia é uma personagem excêntrica. Sempre sonhei que fosse uma ilha incrível até viajar para lá e perceber que é uma ilha incrível, exactamente feita dessa sensação de solidão mas também sugerindo uma abundante companhia espiritual. É um lugar espiritual. Apenas estão sós aqueles que não acreditam.

Quando e quantas vezes esteve na Islândia? Aliás, em algum momento o livro foi escrito por lá? Estive muitas vezes nestes últimos três anos e meio. Escrevi muito lá. Comecei lá. Voltei depois de terminar e antes de publicar. Fui ver e rever. Encontrei meus lugares favoritos e meus confortos. Adoro cada oportunidade de estar ali. 

Você e a protagonista de A desumanização têm coisas em comum? Apenas isso de precisarmos construir, imaginar, um irmão morto. Quando nasci, meu irmão Casimiro já havia morrido. Precisei de o imaginar muito para gostar dele e ser seu amigo.

O que uma criança pode tirar de uma experiência de morte que um adulto não consegue? Não teria a certeza. Mas tudo para uma criança é formador. Para um adulto pode ser apenas um episódio sem mudança. Para as crianças a morte traz a percepção frustrante de que o tempo acaba, os pais acabam, a felicidade e todas as coisas acabam.

Qual é importância do feminino no seu trabalho? Muito grande. Acredito num mundo de duas energias complementares. Nunca opostas. São complementares. Aprendi muito com minha mãe e duas irmãs mais velhas. Estou convencido de que deus é menina. É um desafio grande que quero mesmo colocar-me esse de procurar entender e respeitar o modo de ser das mulheres.

Tem vontade de escrever mais livros com protagonistas mulheres? Certamente. Isso acontecerá adiante. Um dia, volto a criar um narrador feminino. Sem dúvida.

Por que escolheu Mãe para usar como sobrenome? As mães são os seres mais extremos na maravilha. Nenhuma experiência será mais rente ao milagre quanto a da multiplicação do próprio corpo, que gera generosamente outra pessoa, imbuída de uma nova vida e nova personalidade. Aos homens sobra uma participação pobre por demais.

Utopicamente, o artista procura a completude, o entendimento de tudo. Alguém que pudesse estar por natureza consciente do mistério dos homens e do mistério das mulheres haveria de ser alguém preparado para o pensamento universal. Isso me interessa como respirar.

Vai lá: A desumanização, R$ 34,90, Ed. Cosac Naify

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