A cineasta Mariana Cobra, diretora de Nosso Sangue, Nosso Corpo, fez de sua profissão uma verdadeira jornada para conhecer a realidade de mulheres pelo mundo
Será que menstruar é igual para todas? Rodar o mundo e filmar a relação de diversas mulheres com a menstruação fez com que a diretora de cinema Mariana Cobra percebesse algo até então incerto. Praticamente todas as entrevistadas do documentário Nosso sangue, nosso Corpo, lançado em 2018, tiveram ou têm problemas com seu ciclo menstrual. O filme em questão acompanha a trajetória de cinco garotas, de 13 a 19 anos, que moram na Índia, África do Sul, Argentina e Brasil. O intuito foi relatar como elas viveram a fase de transição para a vida adulta dentro de suas peculiaridades. Porém, quando a cineasta conheceu essas mulheres, percebeu muitas coisas em comum.
Aos 35 anos, Mariana acreditava que essa garotada tinha menos problemas com seus ciclos, mas constatou o contrário no processo de filmagem do doc. "Mesmo a geração Z sendo mais conectada e esclarecida sobre corpo e gênero, a menstruação continua sendo um tabu. Me surpreendeu perceber que todas tiveram uma primeira vez marcante", conta. Enquanto na Índia muitas meninas se privam de suas atividades pela falta de esclarecimento e até mesmo de absorvente, no Brasil a menstruação entra em um lugar de silêncio e negação. Para a diretora, seria fundamental tratar o tema como uma questão de saúde pública e disponibilizar absorvente e remédios para a cólica em todo lugar.
"Quando menstruei pela primeira vez, eu até entendia o que estava acontecendo, mas não conseguia processar. Pedi para que minha mãe não contasse para o meu pai e ela não respeitou isso. Foi traumático. Infelizmente, constatei que essa história se repete até hoje com várias meninas, em vários lugares", relata. Para Mariana, esse é um momento da vida que deveria ser totalmente amparado, afinal, a menstruação ocupa boa parte do mês de uma mulher. Ela conta ter aprendido a olhar com beleza para o corpo feminino e todas as mudanças que ocorrem: "É muito revelador perceber esse corpo de outras maneiras".
“A menstruação é o momento de olhar com mais clareza para aquilo que incomoda. Não dá para botar as dores em uma caixinha e pensar depois”
Mariana Cobra
Sobre as mudanças que acontecem ao longo do ciclo, ela observa que durante a TPM seu comportamento é refletir, olhar, silenciar. Enxergar o que acontece de uma maneira mais contemplativa para ter um diagnóstico profundo de tudo que aflora nesse momento. "É uma possibilidade de encontrar um equilíbrio interno. Já a menstruação é sempre um saco para mim, e acho que para muitas mulheres também, né? Por outro lado, percebo que é o momento de olhar com mais clareza para aquilo que incomoda. Não dá para botar as dores em uma caixinha e pensar depois. As brigas e os incômodos ficam maiores, todas coisas que estão lá dentro se potencializam", acredita.
Lente feminina
Mariana não escolheu o caminho do cinema e da fotografia à toa. Sua busca sempre foi por narrativas que representam a verdade das mulheres, inclusive a sua própria. Começou como assistente e pouco a pouco foi fazendo seus filmes. Ela queria se encontrar no que via e fazer com que as outras mulheres também se sentissem contempladas. Seu primeiro curta foi Remorsos, que fala sobre a violência de gênero e foi inspirado num conto do escritor Valter Hugo Mãe. Foi quando sua voz autoral começou a aparecer. "Lançamos em 2015, um momento em que as pessoas ainda não falavam muito sobre abuso. A partir desse filme, ficou claro que nós, mulheres, escondemos diversos assuntos como a violência e a própria menstruação", reflete.
Todas as questões que têm a ver com o feminino e a construção da mulher na sociedade sempre interessaram Mariana, que naturalmente começou a abordar isso em seus trabalhos. Divinas, projeto fotográfico de 2016, reflete muito bem esse mergulho. Em busca de mostrar uma beleza verdadeira, ela tira fotos analógicas de diversas mulheres pelo mundo e, depois, publica tudo em um zine. "Mesmo com as questões características de cada cultura, minha vontade era a de que todas elas se sentissem felizes com seus corpos. No final, eu ficava me perguntando: 'O que acontece com a minha câmera que as mulheres fotografadas se sentem bem?'. Acho que tem a ver com esse olhar de compaixão, amor e empatia. No fundo, o artista é o reflexo das suas próprias questões."
Como diretora, ela faz de tudo e garante que não quer ficar estereotipada como a mulher que só faz filmes femininos. Em sua carreira na publicidade, ela procura ir contra a lógica das propagandas estereotipadas, muitas vezes criadas por homens, e que não refletem os verdadeiros sentimentos das mulheres. "O mercado no geral é muito masculino. A publicidade melhorou bastante, mas muitas coisas ainda carecem de um aprofundamento que só nós podemos dar. Temos um buraco muito grande em algumas narrativas e, embora seja uma luta enorme quebrar esse padrão, estamos tentando. Afinal, é o nosso lugar de fala, entende?", questiona.
Supermulher?
Mesmo com a carreira consolidada, Mariana não parou de lutar para ter o seu lugar. Pelo contrário, se colocar em um universo corporativo muitas vezes foi bem difícil. Ela conta que há alguns anos passou por um episódio de assédio moral em que o gatilho foi sua TPM. "Eu estava trabalhando muito e resolvi questionar com a coordenação uma pendência. Fui acusada de ter sido grosseira e me chamaram para uma reunião. Eu estava em uma crise clara de TPM, chorando, com dor, querendo ir embora. Mesmo implorando, dizendo que preferia falar em outra hora, fui forçada a conversar sobre a situação. Fui exposta, tive de ouvir que isso não faria bem para a minha carreira, que não poderia me comportar daquele jeito. Foi uma das maiores humilhações da minha vida, além de ser uma ameaça", relembra.
Tocada ao lembrar da história, a cineasta diz acreditar que a TPM muitas vezes é usada como um motivo para que ocorra o assédio moral no ambiente de trabalho. Comentários como o famoso "é frescura" desmerecem um momento que precisa de acolhimento e naturalização. "É necessário desmistificar a TPM, pois é um período que merece muito respeito. E, quando as pessoas não respeitam, o que entra em contrapartida é nossa própria existência, nossos sentimentos e nosso corpo. Trocar o 'ai, que saco' pelo 'está tudo bem, vamos lidar com isso' faz toda a diferença." Além disso, ela também acredita que é legítimo admitir os momentos de fraqueza e se fortalecer através deles.
“Ser forte é ter a liberdade de sentir cólica e ir embora. Ser forte é olhar para nossas questões e buscar um entendimento para elas”
Mariana Cobra
"Não querer ser uma supermulher é importante, ainda mais em um mundo que está sempre nos cobrando produzir como as máquinas. Reconhecer que às vezes precisamos de recolhimento e atenção é lindo, afinal, mesmo que nos cobrem, não somos fortes o tempo inteiro. Quer um exemplo? De tanto dizerem que as dores menstruais não são nada de mais, muitas vezes tentamos passar por cima delas… É preciso respeitar nossas dores. Ser forte é ter a liberdade de sentir cólica e ir embora. Ser forte é olhar para nossas questões e buscar um entendimento para elas. Enquanto a gente não se repaginar, vai ser difícil buscar uma felicidade plena. Ser forte é se tornar a mulher que você quer ser", finaliza.
Créditos
Imagem principal: Helena Yoshioka
Texto: Camila Eiroa