Autobiografia fora do armário

por Redação
Tpm #74

A vida dos filhos não é uma conseqüência direta das pendências dos pais. Herdamos missões, sinas e segredos, mas o que fazemos com eles é pessoal, intransferível e imprevisível

 
Alison Bechdel escreve com imagens. Em 2006, lançou Fun Home, suaautobiografia em quadrinhos, ganhadora do Eisner Award e publicada noBrasil pela Conrad. Não perca. Ela cresceu numa família que guardava umsegredo: o homossexualismo de seu pai, que era assumido na prática,embora disso não se falasse. Essa não era a única particularidade dopai dela. Ele era louco por casas antigas, reformava-as com paixão deantiquário, era culto, professor de literatura inglesa. Além disso,havia herdado a funerária da família, daí o trocadilho com “fun”, casafunerária, funesta, mas divertida.

Menina solitária que se vestede garoto, menstrua em silêncio e odeia seus peitos, Alison descobrecedo sua homossexualidade, mas também sobre isso nada se fala. Elacresceu ajudando a construir o museu patriarcal, destino partilhado comuma mãe meio etérea e dois irmãos apagados. É seu pai, na obstinadatarefa de montar uma casa perfeita, em contraposição à sua sexualidadepouco convencional, que constitui a figura central do livro.

Éda estranha vida dele, da dor pela sua morte precoce, da família queela chamava de “Adams”, que Alison tira o material não só para seulesbianismo, mas também para sua arte. Seria balela simplória dizer quealguém se tornou gay porque o pai era homossexual enrustido, ou que éartista porque os pais sacrificaram sua criatividade em prol da vidafamiliar. A vida dos filhos não é uma conseqüência direta daspendências dos pais. De fato, herdamos missões, sinas e segredos, mas oque fazemos com eles é pessoal, intransferível e, principalmente,imprevisível.

Alison acha que o pai, Bruce Bechdel, sóconstituiu uma família por falta de coragem de se assumir, e que a mãeafogou seu talento de atriz nova-iorquina na chatice da maternidadeinteriorana. Porém, quando ela se assume lésbica e comunica isso àfamília, seu pai lhe escreve: “Tomar partido é um tanto quanto heróico,e eu não sou um herói. Será que vale mesmo a pena?”. Talvez os trêsfilhos e a casa-monumento não fossem uma máscara para a sexualidadeoculta, mas a obra de sua vida. Já que,no fim das contas, ele viveucomo quis ou como pôde. Bruce é uma figura rica e complexa, cujamemória a filha restaurou com o apuro artístico que ele dedicava àscasas velhas.

As melhores histórias

Todo mundoadora falar de traumas. Sempre que algo foge do padrãotradição-família-propriedade, como o homossexualismo, procura-se umculpado. Psicologia barata! A vida não é como um daqueles jogos de seteerros nos quais há coisas na imagem que estão fora de lugar e devem serassinaladas. Talvez essa família diferente tenha sido muito menosmaluca do que várias outras, apagadas e convencionais, das quais não hánenhuma história para contar. A vida sexual de todo mundo tem algumarmário; nele guardamos os trajes com os quais nos achamos atraentes ecom os quais adornamos aqueles que nos apetecem. Desse móvel tambémsaem bebês. Você não sabia?
fechar