por Redação
Tpm #71

O espelho separa a imagem do reflexo. Eu não sei qual sou. Talvez a que fita ambas, capaz de resgatar a que poderia ter sido e a que me tornaria

Pensei ter conhecido toda uma raça após haver visto um único membro. Mesmo mestres, crianças, homens. Todos eram iguais ao primeiro deles que havia visto. Ao longo dos anos, reduzi a vida ao que estereotipei sem notar que não há sequer um momento igual – quem dirá gente ou emoções. Distante do presente, escondida em conceitos passados projetados na idéia de felicidade no futuro, eu ensaio o viver que nunca é, que jamais ocorre no agora. Uma pena. A vida passa e não vejo. Onde anda esta tal vida ou mesmo eu mesma que teoricamente deveria estar vivendo-a?

Com o olhar firme sobre uma pessoa que sinto saudades, encontro resposta. Hoje eu sei que fui cruelmente abandonada. Nem mesmo mulher, ainda adolescente, eu fui deixada para trás. Nem sequer fui criança porque tive medo de ser espontânea, quis crescer logo e ser gente grande. E chata. Era precoce, pensava ganhar tempo, ao passo que me perdia de mim. Meus sonhos dilacerados em troca de uma realidade que eu não comprei, mas paguei caro ao negar o humanismo prático que defendi intelectualmente.

Golpes? Nem mesmo os de sorte

Hoje estamos frente a frente, a que abandonou e a abandonada vitimada que não se tornou quem poderia ser. Mas será que deixo de ser por não manifestar quem sou? Talvez a única coisa que ocorra é uma frustração que alimenta uma insatisfação constante que me remete a comentários ocasionais sobre o que amava ou àqueles que amei e deixei partir. Aliás, se realmente me amasse, eu não teria partido de mim! Por isso implorei por amor e negociei amores mesquinhos. Faltava meu amor por mim. Vergonhoso. Que tipo de gente faz isso consigo? Gentinha.

Vivo trancada no silêncio de quem não compartilha, observadora muda de conteúdo, falante de amenidades. Covarde. Inventei um manual, incompatível com a vida, baseada em experiências passadas. A existência faz chacota das minhas teses. Toda teoria vale um único instante. A vida não se repete. Sou eu a repetitiva, repetente do Samsara, a que insiste em aplicar o passado no que vivo agora. Bobagem! Isso demonstra que quero enlatar a vida, controlá-la para que não tenha surpresas, ou frustrações. Sangro pelas minhas desistências, desisti da Patrícia. Muitas de mim morreram, poucas sobreviveram. Ainda resta a esperança de começar a viver.

Então deparo com uma mãe que criou filhos sozinha e vejo a força de quem se apresenta; famílias afastadas que resistem à separação permanecendo unidas em adversidade constante; mulheres grávidas que desabrocham a vida com sementes de gente que plantarão no mundo. Perceber a expressão vital implica senti-la, mesmo quando existe dor. Fugir disso, desde o desconforto de uma postura de ioga até o medo de se apaixonar, reduz minha trajetória que percorrida anestesiada me protege de tudo. Pareço forte, mas somente sou apática. Não sinto nenhum golpe. Nem mesmo os de sorte. Força que nada. Fuga!

Chega de perambular pelo que ocorreu ou pelas suposições do futuro! A especulação é a pista da ausência no presente. Um basta às recordações que não vivi, às expectativas doentias pelo que poderá nunca chegar. Como uma criança que não tem referência e se entrega; como um sábio que admite o controle que não exercemos sobre a vida, eu quero o agora. Aqui todas as possibilidades de mim. Quero coragem para externar quem sou, a bem-aventurança de ser feliz sem filosofia conceitual, na prática perfeitamente imperfeita do ser humano que sou.
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