Andrea Beltrão fala à Tpm sobre o desafio de interpretar Hebe Camargo no cinema
Hebe Camargo nasceu pobre, em 1929, numa família grande. Filha de pai violinista, que tocava profissionalmente nos cinemas, e mãe dona de casa, que tocava piano, semeou riquezas por onde passou. Fez parte da nossa vida por longos anos, cantou nas boates, atuou no rádio e nos palcos e se manteve na TV como apresentadora durante seis décadas. Apesar de suas incongruências políticas, sempre foi valente diante das câmeras. Mesmo vítima de machismo em casa, lutou pela liberdade de expressão, pelos direitos dos aposentados, pela dignidade das mães solteiras e pela causa LGBT. Inspirava confiança e amizade nos telespectadores. Quando gostava de alguém, distribuía selinhos e chamava de “gracinha”. Assim, com seu jeito emotivo e embativo, foi uma heroína, à sua maneira particular.
É este lado B da Hebe, cheio de contradições, que vemos retratado no longa Hebe: A Estrela do Brasil, que chega aos cinemas com Andrea Beltrão no papel da protagonista. Dirigida pelo marido, Maurício Farias, e seguindo roteiro de Carolina Kotscho, Andrea interpreta Hebe nos 1980, quando ela completa 40 anos de carreira, na saída da rede Bandeirantes para o SBT.
Trata-se de um momento em que tudo converge. A perseguição do Serviço de Censura do Governo Federal ao seu programa, por falar sobre sexo e homossexualidade; a presença constante do sobrinho Claudio (Danton Mello) e do filho Marcello (Caio Horowicz), um rapaz, segundo o filme, tímido e ignorado pelo pai, Décio (Gabriel Braga Nunes), e tolerado pelo padrasto, Lélio (Marco Ricca); a estreia na nova emissora com a presença de Roberto Carlos (Felipe Rocha); e o país em crise na transição da ditadura militar para a democracia.
Em entrevista à Tpm, Andrea Beltrão diz que não acredita em imitação nem em incorporação na hora de viver um papel, mas no trabalho duro. Assisti-la interpretando Hebe é indicativo disso. Mais do que possuir características físicas semelhantes, ela soube transmitir as expressões faciais, corporais e gestuais da apresentadora, a empatia no olhar e a presença forte. Na cena em que Roberto Carlos canta, por exemplo, a atriz leva a mão esquerda ao rosto, os olhos marejados, e não há dúvidas: Andrea é a própria Hebe.
Tpm. Como foi o seu processo de imersão na personagem?
Andrea Beltrão. Olha, eu assisti milhares de vídeos. Foram milhares de horas assistindo, vendo a pesquisa que a Carol [Kotscho, roteirista] fez, uma pesquisa impressionante. E eu contei com o auxílio luxuoso da Marina Salomon, coreógrafa e bailarina, da Iris Gomes, que é uma doutora em prosódia, e da Cris Delanno, cantora e arranjadora, que me ajudou muito a cantar as músicas da Hebe e me aproximar por aí.
Achei legal no filme que vocês não tenham partido para a coisa da imitação. Confesso que, num primeiro momento, parti, sim, pra imitação tosca e grosseira, sozinha na minha casa, sem ninguém me ver fazendo besteira [risos], só o Maurício [Farias, diretor e marido da atriz], às vezes, pra dar uma opinião e tal. Foi um caminho interessante e necessário pra poder chegar num outro lugar, que não sei direito qual é. Vendo o filme, não consegui fazer uma imitação perfeita, mas acho que imprimi alguma coisa ali que conversa com a verdadeira Hebe. No momento em que a Carol me convidou, ela já me libertou desse caminho da imitação. Porque existem várias atrizes mais parecidas fisicamente e com mais afinidades imediatas com a Hebe do que eu. Então, isso já era uma avenida. E o Maurício também me libertou desse lugar de imitação porque ele sempre disse: "Você vai achar a sua Hebe".
O acesso a peças do acervo original da Hebe ajudaram a absorver a essência dela? Foi muito legal ter acesso ao figurino original, os sapatos, as jóias, a casa, que o Claudio [Pessutti, sobrinho da Hebe] abriu pra gente. Na verdade, o figurino não é inteiramente da Hebe. O figurinista, Antônio Medeiros, usou muitas peças dela, mas fez um trabalho imenso de pesquisa e reconstrução de novos figurinos. Porque senão, não faria sentido. Toda a equipe teve esse mesmo caminho do Antônio. Muitas vezes, a gente nem sabia se aquela roupa pertencia ou não à Hebe. Várias vezes me confundi. Mas é bom lembrar que um vestido não te faz incorporar a personagem. Pode botar o vestido, a peruca, o sapato, que não vai descer [risos]. Precisa do caminho.
Uma das cenas mais tocantes é quando o Roberto Carlos vai na estreia do programa. A cena em que ela o recebe foi a que mais me emocionou. Chorei muito, de verdade. Aquela música, que fala essas coisas, as emoções que a gente vive, isso me pega. Outras que eu amo são as cenas íntimas, que permitem ver a Hebe de um ângulo que a gente não viu. De costas, de lado, por trás. Porque o que temos dela pra ver é o frontal. Ela de frente pra câmera apresentando. Um ponto que pra mim é super representativo dessa linguagem é a cena do carro. Simboliza ela entrando num mundo particular, diferente. Algo que nunca vimos e que carrega esse sentimento de estar voltando pra casa. Uma mulher sozinha, saindo do trabalho tarde da noite, indo pra casa esquentar a comida, encontrar o filho e o marido.
Muitas das questões sobre o Brasil mostradas no filme e até enfrentadas pela Hebe, como corrupção, homo/transfobia, machismo, censura, polarização e crise, tudo isso ainda está em voga, e agora mais do que nunca. O que você pensa sobre isso? Quando a Carolina me convidou, estávamos num outro momento, muito mais arejado. Então, me chamou muito a atenção que as coisas tivessem girado dessa maneira rápida. E que, infelizmente… Não consigo pensar que para nós foi muito bom lançar o filme nesse momento, porque está péssimo e pode piorar. Infelizmente, o filme cai como uma bomba na atual conjuntura do país. Uma mulher que falava tanto de feminino, defendendo as mulheres, e apanhava em casa, tinha um marido violento...
A sua peça atual, Antígona, também conta com uma personagem que precisa enfrentar um grande poder. Como é para você a relação entre as duas obras? Acontece a mesma coisa em relação à peça. Quando comecei a fazer, ela não tinha nada de tão atual assim. Era um texto clássico, uma obra prima da dramaturgia universal. Uma tragédia grega de Sófocles, uma jovem princesa que desafia o poder. Mas a gente estava vivendo também um momento de leveza, de construção, as coisas pareciam caminhar para um país arejado, com possibilidades, inúmeras conquistas importantes, e aí, de repente… mudou. Fomos atropelados pela vida, com todas as respostas, e hoje é essa atualidade insuportável e lamentável.
Como foi o baque de interpretar uma mulher que vivia com um cara tão possessivo como o Lélio Ravagnani (Marco Ricca) foi retratado no filme? Ele era um cara muito apaixonado, mas muito ciumento, possessivo e terminava sendo violento depois de beber... Eu não sei, já nasci com essa informação no meu chip, no meu DNA, de que ninguém poderia me maltratar. Jamais um homem poderia engrossar pra cima de mim. O que eu aprendi foi: avance nele também. Não sei se é porque eu morava numa casa só com mulheres, mas tive que aprender rapidinho a me defender. Então, não existe esse modelo do Lélio na minha vida.
Tem um momento ali do filme que ela dá um basta, pelo menos… Mas depois ela volta pra ele. Eles terminam a vida juntos. Eles voltam, ele fica doente e ela fica com ele até o fim.
A Hebe era uma mulher cheia de contradições, defendia o Maluf e ao mesmo tempo a Roberta Close. Isso é algo que intriga na personalidade dela. Como você vê isso? Ela não era nenhuma ativista. Nunca se colocou dessa forma, nem o filme faz isso. Nem ativista, nem militante e muito menos subversiva. Ela era uma mulher à direita e sem a menor vergonha do seu pensamento, suas posições políticas. Ela era malufista, e onde está o Maluf agora? Né? Ela era muito controversa e, ao mesmo tempo, uma mulher que tinha uma empatia impressionante. Uma coisa que falta hoje. Se condoer do sofrimento do outro. Abaixar a cabeça de vergonha quando o outro sofre. E ela lutou pela liberdade de expressão no programa dela. Ela não foi pra rua, não fez essas coisas, mas ajudou um bocadinho. Deu um empurrãozinho. Ela era essa mulher, esse furacão, um feixe de contradições. Maravilhosa!
E a série da Hebe, que estreia em janeiro? O filme é um pedaço da série, é quase um capítulo, meio dividido. Todas as fases se misturam o tempo todo sem perder o fio. Tem a Hebe jovem, que é a Valentina Herszage, uma grande atriz. A série vai dos 10 anos de idade até os 83.
E como estão os seus planos dentro da Globo agora? Vou começar a fazer uma novela da Lícia Manzo. Vai ser uma volta bacana, eu estava doida para voltar para as novelas. Durante a novela, quem sabe eu consiga escrever uma outra peça que já tenho em mente, mas que não posso falar muito porque não tenho os direitos [risos].
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