A voz do Bob Dylan, curry e Medicina

por Mariana Perroni

O cantor precisa mesmo ”reaprender a cantar em um intensivão de três meses”?

Lembro-me de, há alguns anos, ter assistido a um episódio de House em que a ex-mulher dele fez uma das comparações mais geniais para defini-lo e ilustrar a dinâmica do relacionamento que os dois tinham. Se não me engano, após alguns segundos de silêncio durante uma conversa, ela olhava para ele e dizia que ele era como: curry. Ao notar sua expressão de interrogação perfeitamente misturada com sarcasmo, ela continuava: 

 "Você é abrasivo, irritante e áspero demais na hora em que quer se aproximar... que nem curry. Isso é legal quando se está morrendo de vontade de comer curry. Mas não importa o quanto você ame o molho, se você comer demais, machuca a boca e até faz mal. Daí a gente fica sem querer comer curry de novo por um bom tempo... até aquele dia em que você acorda e pensa 'nossa, que vontade de curry!'" 
 
Provavelmente, nada disso fez sentido para ninguém que está lendo até agora. Mas, como o show está ficando próximo e preciso decidir se pagarei o extorsivo preço para vê-lo, pensei que minha relação com o Bob Dylan é exatamente assim. Apesar das músicas dele terem marcado importantes épocas da minha vida, tem dias que sinto como se ouvir sua voz correspondesse a pegar meus tímpanos com uma pinça e raspá-los no asfalto. E dias em que o "folk de protesto" dele me parece irritante e exagerado. Já, algum tempo depois, simplesmente tenho uma vontade incontrolável de dirigir em direção à praia ao som de Freewheelin' ou me flagro assoviando "I Shall Be Released" após tomar alguma porrada da vida.
 
Talvez tenha sido por isso que me incomodei tanto ao me deparar com essa reportagem em que um médico especialista afirma que ele "sofre de fadiga na voz e precisa reaprender a cantar". Segundo o médico do Zezé Di Camargo e do Galvão Bueno, depois de anos  cantando "sem técnica", o Sr. Dylan, o segundo maior artista de todos os tempos, ganhador de Grammy, Golden Globe, Oscar e lugar no Rock and Roll Hall Of Fame precisaria "reaprender a cantar em um intensivão de pelo menos três meses" se quiser melhorar sua voz. E ilustrou isso com os casos dos outros dois famosos acima, que já foram seus pacientes e autorizaram (espero) que seus nomes e diagnósticos (e até fungos) fossem expostos num portal de notícias dessa magnitude.
 
Como a própria reportagem diz, o debate em torno da voz do Bob Dylan é tão antigo quanto aquele em torno de suas letras de protesto. "lixa cantando", "mistura de cola e areia", "nasal"... foram inúmeras as tentativas de caracterização. Sempre sem sucesso. Até porque, na minha opinião, a única definição que cabe é voz-de-bob-dylan. Goste ou não. Ouça ou fuja dela. Ou, como no meu caso, ouça E fuja dela. Em momentos diferentes.
 
Sendo assim, por mais graduado, famoso e especializado que se possa ser, não consigo entender como é possível propor um "conserto" para a voz de alguém que já influenciou (e continua a influenciar) incontáveis músicos, movimentos políticos e gerações utilizando-se exatamente de suas particularidades. E, o pior, que não pediu opinião médica. Na minha cabeça, não deixa de ser uma versão um pouco mais sofisticada daquele costume dos senhores de meia-idade e circunferência abdominal gigantesca se juntarem com o copo de cerveja na mão para debater como o craque de 23 anos deveria ter chutado a bola ou feito o drible para não perder o gol. 
 
De qualquer forma, sei que sou só uma médica de 29 anos, de uma especialidade que pode até prejudicar vozes (ah, os tubos orotraqueais...) e que ainda precisa de "muita experiência nessa vida". Mesmo assim, eu também tenho a minha cópia do Juramento de Hipócrates, a qual leio com uma certa frequência. E quando ele insiste em caracterizar a medicina como uma arte, sempre me pergunto se, salvo em caso de urgência/emergência, mais do que fazer diagnósticos e propor tratamentos, essa "arte" não seria a capacidade de ficar na sua e respeitar a vontade do paciente, estando sempre pronto e disposto a ajudar com todo o conhecimento disponível. Quando solicitado.
 
Talvez eu nunca chegue a uma resposta para essa pergunta. Mas, se eu pudesse chutar uma, certamente seria: the answer, my friend, is blowin' in the wind... the answer is blowin' in the wind...

meu Twitter: @mperroni
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