A louca vida do médico Dorian Paskowitz: um trailer e 25 anos na estrada com a família
Por 25 anos, Doc Paskiwitz, sua mulher e os nove filhos viveram em um motor home de 8 m, correndo atrás de ondas perfeitas e comunhão familair. Eles brigaram, passaram fome, não se adequaram ao "mundo real" - mas sobreviveram para contar sua história no cinema
A história do surf está repleta de outsiders que decidiram abandonar o conforto material, cair na estrada por anos a fio e viver de pegar ondas. Mas o caso do americano Dorian “Doc” Paskowitz é único. Ele fez tudo o que foi descrito acima. E ainda carregou consigo a família e a casa. Por família, entenda-se a mulher, Juliette, e os nove fi lhos (oito homens e uma mulher). E, por casa, um motor home com 8 m de comprimento. Ao longo de 25 anos, a chamada “Primeira-família do Surf” cruzou os Estados Unidos, o México e o Havaí, vivendo quase sempre no aperto, e não apenas no sentido literal; em vários momentos, eles sofreram com a falta de comida, água, dinheiro e roupas quentes.
Paradoxo ambulante entre o espírito individualista do surf e a índole gregária de patriarca judeu, Doc tem sua incrível aventura contada no documentário Surfwise, de Doug Pray. Presente em várias listas dos melhores filmes do ano passado (mas ainda não comprado para o Brasil), a produção conquistou um séquito de fãs – entre os quais Doc não se inclui.
Nada contra o documentário (co-produzido por Jonathan Paskowitz, um de seus fi lhos). Ele simplesmente se recusa a acompanhar qualquer exibição. “Eu dediquei quase toda minha vida ao surf. Comecei com 11 anos e continuo surfando aos 87. Conheci os maiores surfistas de todos os tempos, de Duke Kahanamoku a Kelly Slater. Eu me sinto pequeno em comparação a eles, e acho que não mereço um filme. Juliette e meus filhos me convenceram a participar, mas não pretendo vê-lo”, explica Doc, por telefone, de sua casa em Waikiki, no Havaí, onde sossegou há dez anos.
Sossegou é modo de falar. Conhecido como guru da vida saudável, da alimentação orgânica e da alta frequência sexual, o quase nonagenário Doc caminha diariamente por uma hora pelos morros de Waikiki, segue uma rígida dieta sem sal nem açúcar (que ele se impôs por causa de um problema no coração como forma de evitar uma cirurgia), surfa ocasionalmente com seu longboard e faz sexo com a mulher de 77 anos sempre que tem sucesso em seduzi-la. “Eu a persegui ontem e consegui agarrá-la. Hoje vou preparar minhas armadilhas de novo”, ele conta com naturalidade. Perguntado se era adepto de algum estimulante sexual (o repórter pensava, claro, no Viagra e congêneres), Doc responde: “Claro, Mozart, Beethoven ou Vivaldi e uma taça de champanhe”.
SABBATH NA PRAIA
Antes de ser Doc, a lenda do surf, ele foi doctor Paskowitz, médico que se formou em Stanford nos anos 40, mudou-se para o Havaí na década seguinte, casou e se separou duas vezes e pensou em ser governador. Até que um dia ele decidiu que já era o suficiente. Sem apego pelo acúmulo de dinheiro ou de status social, ele deixou tudo para trás, viajou para Israel, viveu algum tempo com os beduínos e introduziu a cultura do surf no país de seus ancestrais.
De volta aos EUA, apaixonou-se por Juliette, cantora de ópera descendente de mexicanos, começou a gerar filhos em ritmo industrial e decidiu perambular com eles em um motor home – parando por mais tempo apenas para dar clínicas de surf em diversos pontos do litoral americano. Questionado sobre suas motivações para adotar o novo estilo de vida, Doc tem uma resposta pronta: “Três coisas me inspiraram:
o surf, minha paixão pelo oceano; o bem-estar físico, ser uma pessoa mais ágil e saudável; a família, ter uma vida que me possibilitasse estar sempre perto dos meus fi lhos. Eu não sou o tipo de cara que quer sair sozinho à caça do grande tigre siberiano e voltar meses depois. Prefi ro nunca sair do lado da minha família”.
Para muitos garotos que cruzavam o caminho dos Paskowitz, eles tinham uma vida de sonho. Como diz Salvador, o sétimo fi lho, no documentário: “A maioria dos pais diz: ‘Vá para a escola, não nade com os tubarões, é perigoso’. Nossos pais diziam: ‘Pode nadar com os tubarões, mas não vá para a escola’”. Os nove filhos foram educados por Doc e Juliette em sua casa/trailer e celebravam o ritual judaico do Sabbath toda sexta à noite em alguma praia.
Mas, para alguns dos pequenos Paskowitz, a vida nômade da família estava longe de ser um conto de fadas. Doc impunha aos fi lhos seu severo estilo de vida, distribuía alguns safanões e incentivava as brigas entre os filhos em busca de obediência. Como amante do meio ambiente, ele acreditava que suas crianças deveriam ser criadas de maneira parecida com animais, baseando sua sobrevivência na comunhão com a natureza. E, sim, houve os dias de fome, desidratação no deserto, falta de roupas para se esquentar do frio.
SEXO NO MOTOR HOME
No documentário, alguns dos filhos queixam-se abertamente do fato de não se sentirem “equipados” para viver no “mundo real” a partir do momento em que decidiam sair debaixo das asas dos pais. É Salvador quem resume a situação: “Eu fui preparado apenas para ser um surfista, um vagabundo ou um rock star”. Abraham, o terceiro filho, conta que, quando saiu de casa aos 15 com o sonho de se tornar médico, logo descobriu que a falta de educação formal não permitiria que ele entrasse na faculdade antes dos 30. E Navah, única filha mulher, reclama que ouvir seus pais transando toda noite no motor home não ajudou em seu amadurecimento afetivo. Doc diz não ter nenhum arrependimento sobre seu estilo de vida. “Eu tenho remorsos pontuais, como uma vez em que um dos meus filhos entrou no mar com uma prancha quebrada e se cortou de maneira quase fatal na hora em que eu tirava um cochilo. Mas não me arrependo do meu lifestyle. Faria tudo igual. Não é que fiz planos e venci ou falhei. Eu apenas vivi.”
Sobre a reclamação de alguns filhos de não estarem preparados para o mundo, ele dá de ombros: “Não acho que isso foi consequência do nosso estilo de vida, mas das difi culdades normais que todas as pessoas têm. Eu me preocupei em desenvolver nos meus filhos personalidades fortes e elegantes. Sempre quis que ficassem satisfeitos com eles mesmos, não comigo”.
Ao longo da jornada de um quarto de século no motor home, Doc sempre teve o apoio incondicional da mulher. “Estava apaixonada por ele, e ainda estou. Nunca quis abandonar o navio. Meu maior motim foi comer escondido com as crianças um ou outro pedaço de torta. Houve momentos dolorosos de brigas entre pai e filhos. Mas eu sempre tomei cuidado de me solidarizar com eles sem ficar contra o Doc”, afirma Juliette.
Se os filhos que tentaram mudar de estilo de vida trombaram com enormes dificuldades, aqueles que apostaram no surf trilharam um caminho mais suave. Todos os filhos aprenderam a amar o surf desde muito pequenos. Mas alguns se tornaram grandes profissionais, como Jonathan, que ganhou o campeonato mundial de longboard em 87-88, ou conseguiram fazer do esporte um meio de vida, como Israel, que dirige o Surf Camp da família, o mais antigo dos EUA, criado em 72. “Nossa vida na estrada foi maravilhosa, era como ser Peter Pan todos os dias. Mas eu sentia falta de individualidade e saí de casa com 12 anos. Fui para Israel, vivi nas ruas e voltei para viver do surf. Queria juntar algum dinheiro e consegui [além de co-produtor de Surfwise, hoje ele é diretor da fabricante de pranchas Lightning Bolt nos EUA], mas sinto falta dos tempos de dureza. Se você está na praia sem dinheiro e sem preocupações, é um homem livre. Por isso hoje eu admiro meu pai não só como um amigo, mas também como um sábio”, diz Jonathan.
Além da disciplina física, o desapego material sempre foi uma das bases do código de conduta de Doc. Desde os anos 50, ele tenta viver com o mínimo possível. “Minha palavra preferida é ‘sufi ciente’. Não quero nem mais nem menos do que isso.” Doc perdeu três motor homes por dívidas, mas não cobrou mais pelas consultas médicas que faz até hoje. Aos 87 anos, ele só tem dinheiro guardado para viver os próximos dois meses e está sem aquecimento em casa. Aproveita para fazer propaganda de seu último livro, Surfing and Health, na esperança de pagar o futuro aluguel. Mas ele diz que não pretende mudar seu estilo de vida. “Outro dia um milionário me disse: ‘Eu queria ter filhos como os seus’. Eu não devo estar tão errado assim.”