Só tem câncer quem pode

por Mariana Perroni

Vou falar algo que pode chocar muitas pessoas: câncer não dá só em quem ”merece”

1- Há duas semanas um colega médico com cerca de 40 anos, saudável, que não bebe ou fuma e é corredor de maratonas começou a ter um desconforto estranho na barriga. Incomodado com o novo sintoma, submeteu-se a uma bateria de exames. Exames esses que permitiram que ele ganhasse mais uma caracterização: portador de câncer. De pâncreas. Depois dessa última semana, imagino que nem precisarei relembrar alguém do quão ruins são as perspectivas de vida de alguém com um diagnóstico de um câncer nesse órgão.

2 - Durante minha residência de Clínica, atendi uma senhora extremamente doce. Dona de um sorriso sereno, digna fazer parte de livros do Monteiro Lobato. E que todos gostaríamos de ter ou ter tido como avó. Queixava-se de uma falta de ar que andava piorando ao longo do tempo. O diagnóstico, depois da investigação? Um câncer de pulmão. Ela, que tinha morado a vida toda numa fazenda no interior, não se adaptou ao fogão elétrico e fez questão de continuar usando o fogão a lenha por anos a fio. Pena que a fumaça do fogão a lenha é consideravelmente mais danosa ao organismo que a do cigarro convencional.

Resolvi começar meu texto com esses dois exemplos porque tenho ouvido comentários que têm me incomodado de sobremaneira, desde que o ex presidente descobriu um câncer em sua laringe. E isso não tem relação alguma com política ou minha opinião sobre o que ele fez ou deixou de fazer durante seu governo.

Antes de discutir a repercussão do fato, é preciso informar. Então lá vai. Os fatores de risco gerais para o câncer de laringe são:

- Idade maior que 50 anos
- Sexo masculino
- Consumo de cigarro e/ou álcool
- Morar em regiões próximas ao Equador

Difícil encontrar indivíduos com essas características no Brasil, não é? Provavelmente a maioria dos senhores pais de quem tem ao redor de 25-30 anos têm mais de um ou todos esses fatores de risco.

Só que apenas isso não basta. Na medicina, é comum dizer que só tem câncer quem "pode". Eu explico: não basta ter exposição aos fatores de risco. A pessoa também tem que ter a susceptibilidade genética para, frente a esses fatores de agressão (ou mesmo nunca tendo se exposto a eles), desenvolver uma mutação em UMA célula que vai acabar por ser transferida às outras, durante o processo de multiplicação celular, levando à formação do câncer.

Sendo assim, vou falar algo que pode chocar muitas pessoas: Vide os dois exemplos com que comecei o texto e muitos que sou capaz de enumerar, câncer não é castigo. Não é algo que dá em quem "merece" ou em quem "procura". Não é matéria de faculdade e, se você tiver a sorte de sobreviver a ele, não vai te dar crédito para a vida. A experiência não é um alambique. Não vai te depurar, eliminando o que há de ruim nem concentrando aquilo que há de bom. 

Por mais que isso possa tirar a falsa sensação de conforto e justiça que essa crença pode trazer, as coisas não são assim. Lamento informar que o "Aqui se faz, aqui se paga" não funciona para o câncer. A taxa de mutação e replicação das células não é e nunca será regida pela Lei de talião. 

Dessa forma, você, a mesma pessoa que, há poucos dias, pedia que clicássemos no Facebook para compartilhar se conhecíamos alguém que "sofreu ou morreu lutando contra um câncer" (no intuito de parecer engajado e divulgar o Outubro Rosa) devia contar até dez. Vai dar tempo para pensar um pouquinho antes de sentar na mesa do bar e, entre uma caipirinha e outra, puxar exaltadas conversas sobre o quão "bem-feito" e merecido é o câncer do ex presidente.

(meu twitter: @mperroni)

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