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Marika Gidali e Vanete Almeida

A bailarina vai até o sertão para conversar com a educadora

Seis horas de carro por uma longa estrada em linha reta, cortando a paisagem semiárida, a separam do aeroporto internacional do Recife. No retorno para sua casa em São Paulo, deixando o sertão pernambucano, a bailarina e coreógrafa Marika Gidali carrega na bagagem a rapadura de goiaba de dona Lourdes e a inspiração que essa e outras mulheres sertanejas despertaram em sua alma. A fundadora da companhia paulistana Ballet Stagium partiu, do alto de seus 72 anos, com ânimo juvenil rumo à terra de Vanete Almeida, na região de Serra Talhada, a 450 km de Recife, onde nasceu Lampião. Lá, a educadora popular de 66 anos foi a primeira mulher a assumir a coordenação de sindicatos de trabalhadores rurais, no início da década de 80. Tirou as mulheres de casa, ensinou-as a se organizarem social e politicamente e as ajudou a resgatar a autoestima e a diminuir a violência doméstica. Marika e Vanete estão entre os 13 homenageados do Prêmio Trip Transformadores 2009, marcado para o dia 25 de novembro, no Auditório Ibirapuera, em São Paulo.

“Quando me convidaram para essa aventura, pensei: ‘Será que vale a pena?’ saí completamente reenergizada”, conta Marika

Quem crê numa caatinga seca se surpreende com o verde que tinge a vegetação local no inverno. Este de 2009 foi especialmente chuvoso e, assim, Vanete e seu sertão receberam Marika com sucos de cajá, acerola e abacaxi, pratos de bode e galinha de capoeira. Teve até uma cacimba de água fresca para relaxar os pés inchados da bailarina. Mas foi o olhar das mulheres do sertão, com suas histórias de liberdade e superação, que impressionou Marika, ainda que ela estivesse acostumada a percorrer o interior do Brasil levando a dança para quem nunca viu um espetáculo. Desde os anos 70, Marika já dançou sob o sol escaldante de Caruaru, sobre um tablado montado em uma barca que descia o rio São Francisco, e rodopiou no chão de terra batida do alto Xingu nos braços de seu marido, o também bailarino e coreógrafo Décio Otero, com quem fundou o Stagium, há quase 40 anos.

Mulheres-panela
Vanete também percorre o interiorzão. No lugar da dança, leva conhecimento. Ajuda as comunidades a se organizarem e ensina, por exemplo, o cultivo de hortas agroecológicas, fomentando feiras nos municípios. Elisângela Oliveira é uma das mulheres que se beneficiaram com o projeto. Mora no assentamento Poço do Serrote e participa dos encontros da ONG de Vanete, a Rede de Mulheres Rurais da América Latina e Caribe. Assim aprendeu a plantar com o uso de defensivos naturais, lavrados sob a sombra da vegetação do cerrado cultivada ao redor da horta, que é regada com água da chuva, armazenada em cisternas negociadas junto à administração pública. Quando Elisângela vendeu suas primeiras verduras na feira, as mãos tremeram ao segurar pela primeira vez a quantia de R$ 80. Hoje, fatura dois salários mínimos por mês. É assim, articulando organizações civis com prefeituras, que Vanete ajuda populações esquecidas, agregando 200 mil trabalhadoras rurais de 23 países. No início, ao reunir centenas de trabalhadores, Vanete percebeu que só os homens participavam dos movimentos: “Eu me perguntava? ‘onde estão elas’”, conta. A mulherada estava na cozinha. Acostumadas a não ter voz, as agricultoras habituaram-se a se esconder atrás do fogão. Foi então que a educadora começou a convocá-las para reuniões, onde começaram a desenvolver a autoestima. “A maioria não conseguia dizer o próprio nome. Ao representarem seu corpo, faziam uma panela.”

 

 

Direito de dançar
Quando Marika chegou à comunidade Olho d’água, encontrou as mulheres reunidas, orgulhosas de liderarem o trabalho de despoluição do riacho local. Da conscientização ambiental à conscientização corporal, Marika logo inicia uma aula de dança com as agricultoras. Sugere que alonguem as costas habituadas a se curvarem para trabalhar a terra. “O direito de dançar é direito de ser. Se você conhece o seu corpo, você o respeita. O corpo que eu amo não será violentado.”

“Eu poderia ter saído do sertão, mas mantenho minha casa aqui para preservar meus ideais”, afirma Vanete

Marika sabe do que está falando. De origem judaica, nascida na Hungria, viveu as atrocidades da Segunda Guerra. “Não tive infância, lutei muito e, quando cheguei ao Brasil com minha família, aos 10 anos, fui abraçada por esta terra. Senti uma liberdade tão grande que pude me desprender do medo que estava grudado em mim. Apaixonei-me violentamente pelo Brasil”, diz a fundadora do Stagium, que trouxe o folclore nordestino para suas coreografias nos anos 70. Durante esta viagem, Marika articulou uma apresentação do grupo em Serra Talhada, para 2010. “Quando me convidaram para essa aventura, pensei: ‘nossa, vou me enfiar não sei onde, será que vale a pena?’. Mas saio daqui completamente reenergizada, com essa carga enorme do ‘não sei onde’!”, sorri Marika, seguida por Vanete: “Precisa de muita coragem e renúncia pra conseguir fazer esse trabalho. Faço questão de continuar morando no sertão. Eu poderia morar em Recife, por causa das inúmeras viagens que faço divulgando essas ações, mas mantenho minha casa aqui, junto ao meu povo, que assim preservo meus ideais”.

Vai lá: www.redelac.org e www.stagium.com.br

Conheça os outros homenageados

O Prêmio Trip Transformadores 2009 homenageia 13 pessoas cujas ações colaboram para a criação de uma nova realidade no Brasil. Confira todo os indicados no site do Prêmio Trip Transformadores

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