SEGUNDA SEM LEI
Segunda sem-lei era o nome da sessão de bang bang que ia ao ar toda segunda-feira na TV Bandeirantes.
Segunda, estávamos na sala dos professores no 4º andar do Pavilhão 6, na extinta Casa de Detenção de São Paulo. O Monitor-Coordenador da FUNAP, 21 presos-professores, o Diretor de Educação e o guarda da escola, quando o faxineiro do setor, de olhos assustados, anunciou. Companheiros armados de facas haviam tomado de assalto o pavilhão que estávamos reunidos. Os guardas dos andares abaixo já haviam sido dominados. As portas estavam bloqueadas com bujões de gás e móveis. A tragédia estava desenhada.
Cidão, que nos coordenava pela FUNAP, era nosso amigo. Nós escondemos a ele, e o pessoal da escola, numa sala em que havia tranca por dentro. Os seqüestradores subiram em busca de reféns. Outros presos subiam e desciam as escadas em grupos, armados de porretes e barras de ferro, destruindo tudo. Danger. Queriam tomar o pessoal que havíamos guardado. Foi mais de hora de conversa para convencê-los a deixá-los ali conosco. Não ficaram muito convencidos. Saíram ameaçando que se as negociações se complicassem, voltariam.
Fechamos que não só não levariam nossos amigos, como também não permitiríamos que destruíssem a escola. Para tornar efetiva aquela decisão, saímos em busca de armas. Sabíamos de uma coleção de facas que eles sempre mostravam, quando havia rebelião. Exploramos salas da Diretoria Penal e as encontramos em um armário trancado. Junto achamos drogas e duas pets com “maria-louca”, provenientes de apreensões na prisão. Negociamos com os companheiros que nos rodeavam. As drogas ficaram com eles. Subimos com o feixe de facas e a bebida.
Conhecíamos os sequestradores. A maioria “nóias” (hiper viciados em crack). Haviam comprado drogas fiado e não tinham como pagar. A segunda sem lei existia para esses acertos de contas. Não pagou morreu. Vários deles eram assassinados semanalmente. Os matadores eram eles mesmos, por qualquer cinqüenta gramas de droga. Era o valor da vida. Aqueles haviam apostado naquela alternativa. Trocar reféns com transferência para outra prisão. O perigo crescia: eles não tinham nada a perder; seriam mortos caso ficassem na prisão.
Armados e agitados pelo álcool, ficamos aguardando os acontecimentos. Conversamos com nossos “hospedes”, e os tranqüilizamos. Mas, caso a polícia subisse atirando, eles se tornariam nossos escudos, estava implícito.
As horas passavam e a tensão subia. Os sequestrantes nos olhavam ameaçadores, mostrando os dentes. Não podiam invadir. Além da parada ser indigesta, eles eram “nóias”, capazes de qualquer coisa por droga. Até indecências. O que os desqualifica na estratificação social reinante. Nós éramos os professores. Levávamos no peito e na coragem uma escola com cerca de 900 alunos. Enfrentávamos salas cheias de bandidos e assassinos todos os dias. Havia que ter moral e conceito na prisão. Mas os “nóias” estavam ficando desesperados. Rondavam, com facas enormes pendendo nas mãos.
O perigo era eminente. As miras a lazer dos atiradores varriam a prisão. Os helicópteros faziam todo barulho que podiam em seus vôos rasantes. A água e luz foram cortadas. A tensão excedia; decisões estariam sendo tomadas. Nossas vidas estavam nas mãos dos outros. A angústia virou agonia e os nervos esticaram a todo cumprimento. A qualquer momento alguém podia perder o controle e a desgraça estaria feita. O massacre dos 111 presos estava fresco em nossa mente; fora ali mesmo. O fantasma dos PMs entrando e dando tiros em tudo que se movesse era o trauma geral.
De repente o batalhão do choque ameaçou entrar. Os sequestradores correram para cima com os reféns. Pensamos que fossem invadir a escola, colocando a todos na mira dos atiradores. Olhei e os amigos professores, já de facas nas mãos, aguardavam tensos. Um dos “nóias” jogou gasolina nos bujões de gás e, com um isqueiro, ameaçava colocar fogo. O choque recuou. Então chegou o Coordenador da COESP (Coordenadoria dos Estabelecimentos Penais do Estado.), Lorival Gomes (hoje Secretário dos Assuntos Penitenciários). Em poucos minutos inteirou-se da situação e resolveu tudo.
Os “nóias” foram removidos (armados e com alguns reféns) para alguma penitenciária ao interior do Estado. O pavilhão foi liberado e nós pudemos voltar aos nossos pavilhões de origem. Dia seguinte voltamos com as aulas, como se nada houvesse acontecido. Aquela era a rotina da prisão, acontecia constantemente, quase sempre na segunda sem lei.
Luiz Mendes
17/08/2009.