Religião e guerra

por Henrique Goldman
Trip #208

”Quanto mais o país se sente acuado pelos inimigos, mais religiosa fica sua população”

Ao visitar Jerusalém para entrevistar a pianista etíope Emahoy Tsege-Maryam, eu entendi: quanto mais o país se sente acuado pelos inimigos, mais religiosa fica sua população

Estou em Jerusalém, onde vim entrevistar a genial pianista etíope Emahoy Tsege-Maryam Gebrou, uma freira de 89 anos, inventora de um gênero musical indefinível que mistura música clássica e jazz com a tradição musical etíope. Às vezes ela é Eric Satie, às vezes Chopin ou Thelonius Monk. Mas também um contrário africano, delicado, misterioso e sublime de tudo isso e muito mais*.

Emahoy nasceu em uma família privilegiada em Adis Abeba. Ainda criança foi estudar na Suíça, se apaixonou pelo violino e logo começou também a tocar piano e a compor. Reza a lenda que, aos 19 anos, ela se preparava para ir a Londres estudar composição, mas que o imperador Hailé Selassié, o próprio Deus encarnado dos rastafáris, a proibiu de viajar – e ela então se entregou à vida monástica. Perguntei para Emahoy se ela sentia algum rancor. Ela sorriu e negou toda a história. “Não foi o imperador, foi Deus que me impediu de ir a Londres para que eu entregasse minha vida a Ele”.

Foi muito emocionante encontrá-la em seu quartinho nos fundos da igreja etíope de Jerusalém. Uma cama, um piano dilapidado e muitas imagens de Cristo. Emahoy ainda toca oito horas por dia. Sonha ter suas mais recentes composições interpretadas por uma orquestra sinfônica. Quem se aventurar pelo bairro que circunda a igreja pode ter a sorte de ouvir o som de seu piano ecoando pelas vielas milenares.

Zebras Judias

Israel é um país que me desconcerta. Para um judeu absolutamente não observante como eu, a identidade judaica é, antes de mais nada, ligada à consciência de que pertenço (ou deveria pertencer) a uma minoria que, por origem, cultura e religião, se difere de uma maioria. Mas, como aqui os judeus são maioria, me sinto perdido caminhando por essas ruas onde as casas e os prédios parecem ser feitos de pão ázimo. Os motoristas de ônibus, os lixeiros, o garçom e a recepcionista do hotel aqui são judeus. Não consigo parar de pensar que isso é uma coisa muito estranha… Levei meu filho ao zoológico e percebi que aqui até as zebras, os leões e os chimpanzés são judeus.

Os israelenses estão cada vez mais religiosos. Meu primo, que nasceu e cresceu em Jerusalém, me disse que, quanto mais o país se sente acuado pelos inimigos, mais religiosa fica sua população. Essa crescente religiosidade, no mundo inteiro, me dá náusea. É feita de rituais vazios, de conformismo e intolerância. Invariavelmente, no Irã, no Morro do Alemão ou em Jerusalém, é sempre o medo que empurra os homens para os braços de Deus – e para os campos de batalha.

*No YouTube, o leitor pode ouvir algumas das obras-primas de Emahoy, como o genial lamento “The homeless wanderer” ou “The mother’s love”, uma balada com ecos de tezeta, uma espécie de blues etíope.

*HENRIQUE GOLDMAN, 48, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br

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