A luz e a sombra de Digo Menezes
Primeiro campeão mundial do skate brasileiro, ele fala de modo franco sobre os desafios que enfrentou, do alcoolismo à depressão
Em uma época permeada pela estética perfeita das fotos que são minuciosamente escolhidas para a linha do tempo do Instagram, ser legítimo e original é raro. Entre erros e acertos, como qualquer ser humano, Rodrigo Menezes, o Digo, hoje com 42 anos, consolidou-se como uma das influências mais genuínas do skate brasileiro. Digo enfrentou os melhores de sua época, caras como Danny Way, Colin Mckay e Mike Frazier, sendo aclamado como o melhor deles quando se tornou o primeiro campeão mundial de skate vertical da história do Brasil, no Münster Monster Mastership, em 1995, na Alemanha. Com apenas 18 anos de idade e cinco anos de prática no half pipe. “Aquele campeonato foi um divisor de águas para mim. Foi muito importante, porque representou um pé na porta, para mostrar que o brasileiro estava ali realmente para competir de igual para igual e mostrar todo o potencial que a gente tinha no esporte”, lembra.
Além do título mundial de 1995, ele foi tricampeão brasileiro de downhill slide, pentacampeão brasileiro de vertical, campeão do circuito europeu em 2004, melhor atleta do ano em 2005 e melhor skatista de vertical do ano em 2006. Um dos skatistas mais overall de todos os tempos, sem dúvida. Contudo, a vida não acontece sempre como na timeline do Instagram. Apesar da carreira brilhante, nos últimos doze anos, Digo vem lidando com desafios pessoais, como a perda de entes amados, lesões, vícios e depressão. “Eu não quero ficar focado em alcoolismo e depressão, porque ninguém aguenta mais ouvir isso vindo de mim. Por isso o kardecismo é tão importante. Porque não basta estudar, você precisa colocar em prática, estar ativo, trabalhando e produzindo”, explica o atleta, com formação kardecista desde a infância, conexão que enfraqueceu justamente quando começou a lidar com o sucesso. “Quando você está muito focado na parte material da vida, o cotidiano, a correria, por exemplo. Eu, na época, no auge do skate, acabei me afastando um pouco do kardecismo.”
“[O título mundial] representou um pé na porta, para mostrar que o brasileiro estava ali para competir de igual para igual”
Digo Menezes
Na trajetória de Digo, além dos feitos esportivos, há um episódio que foi muito marcante no réveillon de 2016, quando ele ficou desaparecido por quase cinco dias e diz ter pagado um preço alto por isso. “Foi uma parada punk. Desde 2007 eu vinha enfrentando vários problemas, mas, do nada, eu decidi tomar uma cerveja e acabei recaindo nessa ocasião. Fiquei bebendo e fui para a casa de uma pessoa que é uma vizinha. Os dias foram passando, acabou a bateria do celular e eu fiquei bebendo. Eu não estava nem aí, para falar a verdade, fui bem inconsequente. Um vacilo. A minha família ficou mal e foi coisa de moleque, mas naquele momento eu achava que estava somente curtindo a festa de fim de ano. Esse episódio ficou marcado e eu venho colhendo legal o que eu plantei. Venho pagando mesmo”, conta.
Bastante reservado, Digo teve uma conversa honesta e franca com a Trip sobre skate, lutas internas, lesões, espiritualidade, fé e a complexidade da vida.
Trip. Conte um pouco da sua infância em São Paulo, como era o ambiente em que cresceu, seus irmãos, pais...
Digo Menezes. Eu corria na rua, jogava bola, brincava de carrinho de rolimã, sempre curti bastante os esportes. Meu pai era alfaiate ali na rua Girassol, na Vila Madalena. Eu ficava na rua descendo de carrinho de rolimã e curtia fazer natação na casa de um amigo, jogava basquete também. Eu tive uma infância bem bacana, de moleque mesmo, descalço o dia inteiro. A Vila Madalena era um bairro tranquilo naquela época, não tinha trânsito etc. Tenho dois irmãos, o Alexandre e o André, e minha mãe trabalhava na alfaiataria com o meu pai, que era relativamente famoso no ramo, tinha clientes que eram atores famosos, por exemplo.
“Eu ficava na rua descendo de carrinho de rolimã, curtia fazer natação, jogava basquete. Eu tive uma infância bem bacana, coisa de moleque”
Digo Menezes
Você começou com o downhill no skate, certo? Isso tem a ver com os carrinhos de rolimã? Sim. Comecei no downhill slide em 1987, nas ruas aqui da Vila Madalena. O meu irmão, Alexandre, tinha um amigo, o Chacrinha, que aparecia em casa com um skate bem antigo, pequeno, aqueles Torlay. Um dia ele colou, eu pedi para dar um rolê e foi amor à primeira vista. Meu irmão acabou fazendo um rolo com ele para me dar o skate de presente. E acho que pode ter a ver com o carrinho de rolimã, sim, porque eu realmente curtia descer a rua Girassol a milhão. Talvez já estivesse no sangue essa coisa da adrenalina e do vento na cara.
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Quando e onde você dropou do vertical pela primeira vez? Depois dessa época, em 1988, 1989, 1990, fui tricampeão brasileiro de downhill slide e comecei a ter patrocinadores, já estava andando na Top Sport. Estava começando a andar em transição (rampas). Andava no banks e ali também tinha um half pipe. Enquanto isso, a cena do downhill estava acabando, porque a Ladeira da Morte, que era o melhor pico para o esporte, tinha sido fechada. Meu primeiro drop no vertical foi nesta época, na Top Sport. Eu já dava até uns fake ollies e tinha medo de dropar. Amarelei um pouco, mas, quando dropei, tive a certeza de que aquilo era o que eu queria fazer. Logo depois disso, a Top Sport fechou e abriu a Prestige. Foi aí que tudo começou.
Apenas cinco anos depois, em 1995, você conquistou o primeiro título mundial de skate vertical do Brasil, no Münster Monster Mastership. Como o campeonato na Alemanha mudou a sua vida? Essa conquista realmente foi um processo. Tudo começou em 1993. Eu fui para a Alemanha sem dinheiro, porque meu patrocinador não queria bancar, e eu fui de qualquer jeito. Dormi no carro e na rua. Passei fome. Mesmo assim, consegui ficar na sexta colocação naquele ano. Em 1994, foi o mesmo esquema. A mesma roubada, sem grana e sem nenhuma estrutura. Consegui ficar com o oitavo lugar e fui uma das revelações da competição nestes dois anos. Em 1995, entrei para o time da Think Skateboards e já tinha uma estrutura, fiquei num hotel bacana e estava nos EUA treinando um tempo antes de correr este campeonato. Treinando em rampa boa, porque a gente treinava na Prestige: eu, Bob Burnquist, Geninho, Jean, Mancha, o próprio Ueda. Toda uma geração. Então, ganhar esse campeonato foi um processo. Um divisor de águas. Foi muito importante, porque representou um pé na porta. Para mostrar que o brasileiro estava ali realmente para competir de igual para igual e mostrar todo o potencial que a gente tinha no esporte. O Bob venceu o Slam City Jam, no Canadá, que é considerado o campeonato norte-americano, e, pouco tempo depois, cerca de dois meses, eu venci o principal campeonato do mundo de skate naquela época. Depois disso, lancei um shape pela Think Skateboards com a bandeira do Brasil. Foi um marco para o skate brasileiro ter pela primeira vez uma marca estadunidense patrocinando um atleta brasileiro com a nossa bandeira. Naquela época, o skate não era tão grande como hoje, mas rolou alguma mídia e acho que cerca de 5 mil dólares de premiação.
Como foi sua entrada para o kardecismo? O meu pai era espírita e a minha mãe, católica, mas também se tornou espírita por influência do meu pai. Ele frequentava a Federação Espírita, no Centro de São Paulo, na rua Dona Maria Paula, isso muito tempo antes de eu nascer. Então, eu já nasci em uma família espírita, kardecista, que fazia o evangelho no lar. Meu pai era muito sério com isso. A gente tinha que fazer; eu já frequentava o centro quando criança. Assistia às palestras e tinha muitos livros. Cresci vendo meu pai lendo obras de Emmanuel, André Luiz, Chico Xavier etc.
Mas tem algum momento em que se desliga? Quando você está muito focado na parte material da vida, o cotidiano, a correria, por exemplo. Na época, no auge do skate, acabei me afastando um pouco do kardecismo, mas nunca deixei de fazer as minhas orações. Hoje, a doutrina espírita me ajuda em tudo. Eu recebi muita instrução por meio dela. Em vários momentos da vida, principalmente durante os mais difíceis, como o alcoolismo e a depressão, o kardecismo me ensinou que não adiantaria eu tirar a minha própria vida. Quando você está desesperado, essas coisas podem passar pela sua cabeça, achando que tudo vai acabar e a dor vai passar. Com a perspectiva espírita, você aprende que não existem atalhos e que precisamos ter força para seguir em frente mesmo com qualquer dificuldade. Sempre lutando. Com paciência, amor e força de vontade para continuar levantando. As quedas fazem parte do nosso processo evolutivo. Então, não quero ficar focado em alcoolismo e depressão, porque ninguém aguenta mais ouvir isso vindo de mim. Por isso o kardecismo é tão importante. Porque não basta estudar, você precisa colocar em prática, estar ativo, trabalhando e produzindo.
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Falando sobre dificuldades e sofrimentos humanos e de como eles fazem parte do nosso desenvolvimento: o que aconteceu na virada de 2015 para 2016, quando você sumiu por quase cinco dias? Aquilo foi uma parada punk. Desde 2007, várias coisas vinham acontecendo na minha vida. Naquela época, entre 2007 e 2008, eu estava morando nos EUA e treinando na casa do Bob. Dois dias antes do campeonato que eu ia correr, meu pai morreu. Eu estava na casa do Bob, liguei para casa e acabei descobrindo que meu pai tinha morrido e eu já tinha perdido até o velório. Antes disso, minha mãe teve um câncer maligno, o meu pai estava com Alzheimer. Eu cuidei deles. Foi uma fase muito foda. Minha mãe teve uma embolia pulmonar durante a qual eu tive que ressuscitá-la fazendo respiração boca a boca. Tudo começou aí. No meio disso tudo, perdi patrocinadores, tive um revés financeiro etc, foi um turbilhão de coisas acontecendo ao mesmo tempo e várias dívidas. Foi muito punk, tudo na sequência. Ainda assim, me recuperei e voltei para os EUA para treinar em 2009, quando me machuquei sério na mega rampa. Fiquei dois anos e meio em tratamento e quase perdi o pé, que necrosou. Depois disso, me recuperei novamente e fiquei quase cinco anos dando aulas de skate. Finalmente, no fim de 2015, do nada, decidi tomar uma cerveja e acabei recaindo nessa ocasião. Fiquei bebendo e fui para a casa de uma pessoa que é uma vizinha. Os dias foram passando, acabou a bateria do celular e eu fiquei bebendo. Eu não estava nem aí, para falar a verdade. Fui bem inconsequente. Um vacilo. A minha família ficou mal e foi coisa de moleque, mas naquele momento eu achava que estava somente curtindo a festa de fim de ano. Esse episódio ficou marcado e eu venho colhendo legal o que eu plantei. Venho pagando mesmo.
“Nasci em uma família espírita, kardecista, que fazia o evangelho no lar. Meu pai era muito sério com isso. Eu já frequentava quando criança”
Digo Menezes
A vida é muito complexa. Muito, mas, na real, isso tudo tinha que acontecer para que eu pudesse entender uma série de coisas.
Como você está hoje? Estou bem melhor e focado em voltar andar de skate forte. Fiquei longos meses em depressão, complicado, achei que nunca fosse sair. Estou sóbrio há vários anos, mas, de vez em quando, bate uma depressão do nada. Agora estou me fortalecendo e recebi um convite do Gui, meu irmão, que tem o Vert In Roça, para ficar com ele ali em Guaratingueta [interior do estado de São Paulo] e treinar. Tem um half pipe, um banks, é um sítio dele. Eu estou indo para lá, ficar com ele e treinar.
Quais são os planos para 2020? Retomar a minha vida como skatista e me divertir. Acompanhar a nova geração, as Olimpíadas, tudo o que está rolando atualmente. Quero andar o máximo que eu puder de skate vertical, mas quero trabalhar também. Parte fundamental do processo de depressão gira ao redor de estar ocioso. Então, preciso trabalhar, produzir. Quero ocupar todas as horas do meu dia com atividades construtivas. Isso é fundamental para quem combate a depressão. Principalmente, trabalhar e andar de skate, ajudando a minha família e os meus irmãos. Este é, e sempre foi, o meu objetivo. De vez em quando, infelizmente, a vida passa algumas rasteiras e leva um tempo para você se levantar e reconstruir tudo de novo, mas a minha meta é estar em cima do skate, vivendo.
O que você diria para quem lida com a depressão, como você? O que eu digo para quem está lendo a matéria é tenha fé, paciência e procure ajuda. Não sofra sozinho. Não tenha vergonha de fazer terapia. Tem que lutar, erguer a cabeça e seguir em frente. Para cada dificuldade, seja qual for, existe uma carga de aprendizagem a ser assimilada. Não existem atalhos. Procure se focar nessa ideia. Faça o melhor possível, não se entregue e esteja sempre perto das pessoas que você ama. Lembre-se que, por pior que seja a sua situação neste momento, isso também vai passar.
Créditos
Imagem principal: Carla Arakaki