Um barquinho, a areia, as ondas, as garotas de biquíni, o pôr do sol e a maresia inspirando clássicos da MPB
Desde que o samba é samba é assim: um barquinho, a areia, as ondas, as garotas de biquíni, o pôr do sol e a maresia inspirando clássicos da música brasileira, de qualquer tempo, em qualquer ritmo
Claro que não está certo dizer que tudo começou com Dorival Caymmi. Mas é bem verdade que ninguém dava tanta bola para a relação, digamos, amorosa entre a música popular brasileira e a praia até que, em 1954, o compositor baiano batizou seu primeiro LP (um long-play de dez polegadas e oito músicas) de Canções praieiras. Naquele momento, com o conceito de arranjo (só voz, violão e assovio do próprio autor) dos futuros clássicos “Quem vem pra beira do mar”, “O bem do mar”, “O mar”, “Canoeiro”, “É doce morrer no mar”, “A jangada voltou só”, “A lenda do Abaeté” e “Saudade de Itapuã”, Caymmi inventava um gênero. No mínimo, dava um nome a ele. Daquilo até “A praieira”, de Chico Science (do também clássico Da lama ao caos, 1994), ou até o verão que vivemos agora, praia e música só desenvolveram (e discutiram) a relação.
“Essa relação está ligada aos primórdios da gente”, diz Marina Lima. “A composição do mar, dizem alguns cientistas, é parecida com a da placenta. Por isso, a gente tem a sensação de já pertencer ao mar desde antes de nascer.” Entre outras canções feitas olhando para a praia, ela é autora, com o irmão Antonio Cicero, de “Virgem”, em que a personagem sofre de amor sentada na areia do Leblon. Marina, que nasceu em Ipanema, começou a cair no mar muito nova, sem ter noção da importância daquilo. Quando morou nos Estados Unidos, criança, sentiu “falta física” do mar. “Era meu hábitat. Foi um choque.” Voltando ao Brasil, com 12 ou 13 anos, saciou a sede ao limite e começou a surfar. “Depois dos 30, não senti mais falta física. O mar ficou dentro de mim, uma memória interna.” Hoje, ela vive em São Paulo. Quando quer ver o mar, fecha os olhos.
Depois da Bahia de Caymmi, o Rio de Marina tornou-se o símbolo nacional do mar, da praia, do surf – ao menos no imaginário da música popular brasileira. Isso porque, quatro anos depois de lançado o tal dez polegadas de Caymmi, chegou às lojas o primeiro 78 rotações de outro baiano, João Gilberto. Tinha, do lado B, “Bim bom”, do próprio João. E, do lado A, “Chega de saudade”, da carioquíssima dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Nascia ali, em frente ao mar do Rio de Janeiro, a bossa nova. A maior – e mais praieira – revolução musical do país.
“A vida que levávamos junto a Copacabana, e depois a Ipanema, nos levou a compor pensando na natureza, no mar”, conta Roberto Menescal, autor (com Ronaldo Bôscoli) de “O barquinho”, símbolo do clima “sol e mar” brasileiro. “Escrevíamos as canções inspirados por aquela liberdade que era usufruir de um local totalmente democrático, onde fazíamos também os primeiros arremedos de surf, vôlei, tênis de praia, futebol. E, à noite, violão.” Foi na areia de Copacabana que Menescal e Bôscoli compuseram ainda outros clássicos do movimento como “Nós e o mar”, “Ah, se eu pudesse”, “E nem o mar sabia” e “Rio”.
Já “Vamos pranchar”, dos irmãos Marcos e Paulo Sergio Valle (lado B do compacto que tinha “Samba de verão”), foi composta para a direita de quem olha o mar. “Fizemos surfando nas ondas do Arpoador”, lembra Marcos. “O próprio ‘Samba de verão’ foi uma consequência da nossa paixão pela praia. Eu estava no Arpoador quando mostrei a música ao Menescal. Sentado nas escadas do posto de salvamento, de sunga, toquei o samba. Ele disse: ‘Esse vai estourar!’. Fiquei na dúvida: ‘Será?’.”
“Em São Paulo também tem praia, como não? Não demora muito mais do que uma hora pro cara pegar o carro e chegar em Santos”, reclama Roger, vocalista do Ultraje a Rigor e autor de “Nós vamos invadir sua praia”, sucesso de 1985 e trilha sonora, até hoje, para qualquer tipo de invasão. Interpretações posteriores criam que Roger havia composto um manifesto para tomar a música brasileira, dominada pelos cariocas. Ele afirma que fez a letra principalmente para protestar contra o fato de que artistas não cariocas precisavam acontecer no Rio para chegar ao resto do país, já que todo o esquema de mídia, incluindo gravadoras, estava instalado lá. Também valeu de inspiração o rebuliço causado pela criação de uma linha de ônibus que levava banhistas do subúrbio às praias da zona sul.
"Só depois de uns anos morando em uma cidade sem mar eu noto como ele influenciou meu jeito de ser. Sou outro compositor agora por morar num lugar como São Paulo”, Felipe S., do Mombojó, de Recife
Roger acha que nascer ou não em frente ao mar interfere decisivamente no jeito de encarar a vida. “Passei longos períodos no Rio e encontrava todo mundo na praia, no bar. As pessoas são mais afáveis e menos desconfiadas porque estão mais expostas, até fisicamente. São Paulo é mais neurótica”, afirma. “Nunca fiquei olhando pra praia e contemplando. A contemplação do paulista é mais interna. Você faz análise sociológica, antropológica, política. Essas diferenças ficam explícitas na expressão do artista.”
Pernambucano que escolheu São Paulo para viver, Felipe S., da banda Mombojó, fecha com Roger: “Só depois de uns anos morando em uma cidade sem mar eu noto como isso influenciou meu jeito de ser”, diz. “Sou outro compositor por morar em um lugar como São Paulo.”
Parceiro musical de Rita Lee (“a mais completa tradução” de São Paulo, segundo Caetano Veloso), Roberto de Carvalho injetou DNA carioca na música autenticamente paulistana que ela faz desde que começaram a parceria, em 1978. Nascido em Ipanema, tornou mais ensolarado, feminino e sexual o rock de Rita com seus acordes. “Rita e eu passávamos longas épocas à beira-mar, fosse no Rio, em Natal, na Jamaica, em Barbados”, lembra. “Nesses lugares, compúnhamos muito. E é assim até hoje. ‘Reza’, por exemplo, nós fizemos em Miami.”
Baiana criada em Pernambuco e radicada em São Paulo, Karina Buhr lembra que compôs “Ciranda do incentivo”, de seu primeiro disco, na praia. Antes, tocou muitos anos num afoxé na Cantina Z4, colônia de pescadores em Olinda que fica em frente ao mar, “chegando peixe toda hora”. “Tem ciranda, candomblé, jogar flor no mar, dar um mergulho pra tirar as mazelas”, diz. Mais ou menos no mesmo período, fez vocais para a banda Eddie, que se autodenominava “do surf para o surf”. “De vez em quando, a gente fazia um tipo de retiro, em alguma praia, pra ensaiar, fazer música e surfar. Nunca surfei, embora seja uma das grandes vontades da vida. Quando eu ia começar, apareceram os tubarões.”
10 músicos e especialistas indicam suas canções favoritas
Gaby Amarantos, cantora paraense
“A barca” (Padre Zezinho)
Me sinto em uma rede, deitada com meu filho e com familiares e amigos ao redor.
“Quatro semanas de amor” (Gary Col e Peter Udell – Versão: Carlos Colla)
Clássico nas vozes de Luan e Vanessa, lembra adolescência.
“Lenda das sereias, rainha do mar” (Vicente Mattos, Dionel e Arlindo Velloso)
Na voz de Marisa Monte, linda. Tenho forte ligação com sereias.
“Merengue Latino” (Ronaldo Silva)
Minha favorita, tem minhas influências caribenhas e praieiras, pra mexer o corpo.
“Conto da areia” (Romildo S. Bastos e Toninho Nascimento)
Na voz de Clara Nunes, deve estar em todas as listas. É uma poesia!
Karina Buhr, atriz, cantora e compositora baiana, pernambucana e paulistana
“É doce morrer no mar” (Dorival Caymmi)
Tão clássica que parece ter existido desde sempre. Triste e linda demais.
“Cirandeiro” (canção folclórica)
Isso pra mim também já nasceu junto com o mundo.
“O mar serenou” (Candeia)
Nada consegue descrever o que sinto quando ouço Clara Nunes cantando isso.
“Meus cabelos brancos” (Baracho)
Cantada pelas filhas dele, Dulce e Severina e também por Célia do Coco.
“Ciranda de Lia” (Baracho)
Criação do grande mestre cirandeiro, que nasceu em Nazaré da Mata.
Leonardo Lichote, repórter e crítico do jornal O Globo
“A praieira” (Chico Science)
Ciranda sob o peso dos tambores e o groove da Nação Zumbi.
“Quem vem pra beira do mar” (Dorival Caymmi)
Inevitável Caymmi. Compreensão plena da atração que a praia exerce sobre nós.
“Cidade submersa” (Paulinho da Viola)
Para lembrar a força devastadora do mar, do amor.
“Lugar-comum” (João Donato e Gilberto Gil)
Na voz de Arnaldo Antunes, o oceano da canção ganha profundidade.
“A cor amarela” (Caetano Veloso)
Esta é a praia hiper-real, a do verão carioca, de tons saturados.
Adriana Calcanhotto, autora de uma trilogia (ainda incompleta) sobre o mar
“Sargaço mar” (Dorival Caymmi)
Gosto das canções praieiras, mas também daquelas que são do fundo do mar.
“O mar” (Dorival Caymmi)
“O mar quando quebra na praia é bonito.” Nada a declarar depois disso.
“Quem vem pra beira do mar” (Dorival Caymmi)
A história da minha vida: “Quem vem pra beira do mar/ Nunca mais quer voltar”.
“Tarde em Itapuã” (Toquinho e Vinicius de Moraes)
Principalmente na versão da Bethânia, um samba-reggae com muita preguiça.
“A cor amarela” (Caetano Veloso)
Uma pintura de Caetano, a menina preta de biquíni amarelo no verde da onda.
“De repente, Califórnia” (Lulu Santos e Nelson Motta)
Amo “as ondas lambem minhas pernas”, imagem perfeita.
“Maresia” (Paulo Machado e Antonio Cicero)
Petardo que gravei depois de ouvir a leitura do poema pelo próprio Cicero.
“Maritmo” (Adriana Calcanhotto)
Estava deslumbrada com o brilho no mar de Angra que Mario Peixoto filmou.
Alice Caymmi, cantora e neta de Dorival
“As praias desertas” (Tom Jobim)
Canção de amor que coloca a solidão da praia deserta como pano de fundo.
“O mar” (Dorival Caymmi)
Simplesmente a música brasileira mais icônica sobre o mar e seus encantos.
“Quebra mar” (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro)
Remete a um quadro impressionista. O mar como uma visão.
“Leãozinho” (Caetano Veloso)
Não consigo ouvir sem querer ver meus amigos e dar uma volta no Arpoador.
“Desaguar” (Mahmundi)
Canção pós-praia. Principalmente se você tem um romance em mente.
Felipe S., vocalista do Mombojó
suíte “História de pescadores” (Dorival Caymmi)
Pela simplicidade e pelo título. Reúne todos os maiores temas de mar.
Bruno Medina, tecladista do Los Hermanos
“Tereza da praia” (Billy Blanco e Tom Jobim)
A que melhor retrata a essência pueril dos amores de verão.
“A novidade” (Bi Ribeiro, João Barone, Herbert Vianna e Gilberto Gil)
A figura da sereia subvertida como um instrumento de crítica social.
“Januária” (Chico Buarque)
“Até o mar faz maré cheia pra chegar mais perto dela.” Sem mais.
“Conto de areia” (Romildo S. Bastos e Toninho Nascimento)
Letra belíssima, refrão pra cantar gritando, de olhos fechados, com Clara Nunes.
“Festa de Rua” (Dorival Caymmi)
Todas as músicas da lista deveriam ser dele, né? Esta é uma espécie de oração.
Patricia Palumbo, radialista
“Coqueiro de Itapuã” (Dorival Caymmi)
A descrição da areia, e do vento no alto do coqueiral, é toda linda.
“Quem vem pra beira do mar” (Dorival Caymmi)
É totalmente minha cara. Preciso ir pra beira do mar pra voltar pro rumo.
“Ela vai pro mar” (Celso Fonseca e Ronaldo Bastos)
Vejo a cena da mulher caminhando de maiô lilás e me dá uma nostalgia daquele Rio anos 50.
“Mar de Copacabana” (Gilberto Gil)
Uma declaração de amor como só Gil sabe fazer. Imagine alguém te entregar o mar!
“Maritmo” (Adriana Calcanhotto)
Um passeio delicioso pela orla. Sempre que ouço me vejo tomando a brisa fresca.
Pitty, roqueira baiana
“O mar serenou” (Candeia)
Personagens constantes na obra de Clara Nunes: o mar, o pescador e a rainha das águas, Iemanjá.
“Nós vamos invadir sua praia” (Roger Moreira)
A forma mais legal e bem-humorada de abordar a rixa (lenda?) que existia entre o rock paulista e o fluminense.
“De repente, Califórnia” (Lulu Santos e Nelson Motta)
O arranjo e o timbre das guitarras trazem a sensação nítida de ondas.
“Tarde em Itapuã” (Toquinho e Vinicius de Moraes)
Morei em Itapuã. Guardadas as proporções poéticas, a letra é fiel à sensação do lugar.
“Minha sereia” (Carlos Moura)
Ouvi muito na infância. Profundamente ligada a minha memória afetiva.
Roberto Menescal, bossa-novista
“Garota de Ipanema” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
Um doce balanço, caminho do mar.
“As praias desertas” (Tom Jobim)
Elas continuam esperando por nós dois, sempre.
“Rio” (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli)
Rio é mar, é terno se fazer amar.
“Sábado em Copacabana” (Dorival Caymmi e Carlos Guinle)
Pra passear à beira-mar: Copacabana.
“Samba de verão” (Marcos Valle e Paulo Sergio Valle)
Ela vem, sempre tem esse mar no olhar.
Tárik de Souza, jornalista e pesquisador
“Rio” (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli)
É sal, é sol, é sul. É isso!
“Domingo azul do mar” (Tom Jobim e Newton Mendonça)
Uma pérola reluzente injustamente esquecida.
“A praieira” (Chico Science)
Caranguejos com antenas e nadadeiras.
“Samba de verão” (Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle)
Dois surfistas do Arpoador em temperatura máxima.
“Quem vem pra beira do mar” (Dorival Caymmi)
O criador do gênero “canções praieiras” não poderia ser mais exato.