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O veneno de Erlon Chaves

por Flávia Durante
Trip #231

Homenagens marcam os 40 anos da morte do maestro acusado de “não saber o seu lugar”

“O V FIC deixou um rastro de racismo, uma marca de preconceito contra artistas da raça negra, aquela que contribuiu para a música brasileira, como também para a cubana e a norteamericana, com o elemento mais proeminente de seu caráter, o ritmo”, Zuza Homem de Mello no livro A era dos festivais

"Eu quero mocotó! Eu quero mocotó!" Com uma música de simplicidade quase infantil, Erlon Chaves e sua Banda Veneno colocaram abaixo o V Festival Internacional da Canção, realizado em 1970. O motivo não foi só o suingue da canção de autoria de Jorge Ben Jor, mas as performances criadas pelo escrachado maestro paulista.

Como sabia que a música não tinha profundidade para vencer um festival, Erlon Chaves resolveu causar. Ora entrava vestido de marajá, ora vestido de xeque. Em uma das apresentações era abanado por dois homens portando plumas de avestruz. Mas no show final, ultrapassou todos os limites da decência da época. No clímax do show, era beijado e acariciado por diversas loiraças com roupas cor da pele. Pra chapa esquentar ainda mais, Erlon disse ao microfone que, sendo agarrado pelas gatas do palco, todas as mulheres ali presentes deveriam se sentir beijando-o. Sem contar o significado da gíria “mocotó”, apelido dado aos joelhos das moças e logo a outras partes protuberantes da anatomia feminina.

O maestro só não contava com a presença da esposa de um general da ditadura, então sob o comando de Emílio Garrastazu Médici. Horrorizada, logo pediu uma atitude contra o “negro abusado”. Acusado de assédio moral e obscenidade, foi levado a uma delegacia para prestar esclarecimentos e proibido de exercer suas atividades por 30 dias.

Filho de um motorista e de uma faxineira, Erlon Chaves foi criança prodígio e quebrou o manjado estereótipo do negro sambista. Estudou piano, canto, harmonia e regência, compôs trilhas de filmes, novelas e jingles (incluindo o lendário “Já é hora de dormir”, dos Cobertores Parahyba), gravou e fez turnê com Elis Regina. Bon-vivant, namorou Vera Fischer, então Miss Santa Catarina 1969, que conheceu quando era o jurado debochado do Programa Flávio Cavalcanti. Mas foi com a inesquecível parceria com Wilson Simonal que conquistou de vez o reino do suingue. Seus arranjos requintados e dançantes ajudaram a consolidar o soul jazz brasileiro.

Erlon Chaves foi um dos mais notórios alvos de preconceito racial na história da música pop brasileira, ao lado de outros dois “crioulos atrevidos que não sabiam os seus lugares”: Simonal (acusado de ser informante da ditadura) e Toni Tornado (envolvido em imbróglio no mesmo festival por cerrar o punho como os Panteras Negras). Abalado emocionalmente após o episódio do FIC, nunca mais voltou a se apresentar ao vivo. Faleceu de um aneurisma cerebral em novembro de 1974, aos 40 anos, após passar mal em uma loja de discos no bairro do Flamengo. Comprava uma vitrola portátil para Simonal, então preso. Com o passar dos anos, foi alimentada uma história de que a morte teria sido ocasionada por uma discussão defendendo o seu soul brother. Seu enterro foi acompanhado por 3 mil pessoas, entre eles Flávio Cavalcanti, Bibi Ferreira, Martinho da Vila e Simonal (sob escolta da polícia).

O músico e produtor Cacau Franco, primo de Erlon Chaves e administrador de seu espólio, revelou à Trip que planeja um tributo ao maestro no segundo semestre, marcando os 40 anos de sua morte. Em fase de captação de patrocínio, a homenagem virá em forma de shows no Rio e em São Paulo e um DVD.

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