Um propósito social enterrado na montanha
O empresário Pedro Friedrich quase morreu ao escalar o monte Fitz Roy, na Patagônia, mas, preso na neve, encontrou um propósito na vida
Em fevereiro de 1984, o argentino Pedro Friedrich, dono de um corpo robusto e um ar germânico, tinha 25 anos quando decidiu, ao lado do amigo Alberto, escalar o monte Fitz Roy. Trata-se de um cume pontiagudo, a 3.359 metros de altitude, na fronteira da Argentina com o Chile, na região da Patagônia, uma das montanhas mais difíceis de se escalar no mundo. Pedro não era um amador, já carregava na bagagem 10 anos de experiência. Mas naquele dia teve um encontro bem próximo com a morte.
Depois de horas tentando atacar o cume, o mau tempo fez com que Pedro e Alberto fossem obrigados a desistir temporariamente. Ao descer, caíram no sotavento (direção em que o vento sopra) da montanha em um declive, onde havia bastante neve acumulada. Em um primeiro momento, com neve até o pescoço, presos numa caixa de gelo, os dois se desesperaram. Alberto estava mais impactado. Desesperançado, agachou-se e colocou as mãos na cabeça. Na hora, Pedro pensou: "É assim que as pessoas morrem na montanha".
Neste momento, porém, com o filme da sua vida e família (já tinha os cinco filhos) passando na sua mente, achou que ainda não era hora de ir. Em uma reação instintiva, resolveu ponerse en marcha, uma expressão em espanhol que pode ser traduzida para "sair andando". Então, começou a retirar neve da sua frente fazendo o movimento como se estivesse nadando estilo peito. E logo repetindo o movimenato na frente da cintura e depois dos joelhos. Depois disso, dava um passo. Em seguida outro e mais outro, em um processo extremamente vagaroso em meio a um frio enorme. Logo o amigo começou a repetir o movimento e, muitas horas depois, conseguiram chegar em um lugar onde a neve pegava no joelho. Ali, armaram uma barraca para passar a noite antes de seguir para o acampamento no dia seguinte.
Este período entre a vida e a morte marcou a história de Pedro e impactou muitas coisas na sua vida, inclusive o jeito com que faz negócios.
No início da década de 1990, Pedro ingressou na metalúrgica Tonka, fabricante de dispositivos de controle e de segurança para a indústria de gás, fundada 20 anos antes. É um negócio sem grande apelo aspiracional conduzido de um jeito muito inspirador. Por conta própria, adotou a sustentabilidade profunda, fundamentada em cinco pilares: eliminar o desperdício (lixo); aumentar o uso da energia limpa dentro de casa; neutralizar a pegada ambiental; contribuir para a felicidade dos funcionários; e, finalmente, o que para ele resume tudo: agir com propósito.
A conversa com Pedro se deu em uma sala espartana, tremendamente organizada, da sede da Tonka S.A. em Buenos Aires, capital argentina.
Trip. O que você aprendeu no episódio do monte Fitz Roy?
Pedro Friedrich. Aprendemos que, frente a um problema de grandes dimensões, talvez insolúvel, só resta fazer uma coisa: dar um passo no que parecer ser a melhor direção, mas, acima de tudo, dar um passo. Dar um passo e depois outro simboliza que nos colocamos em marcha em direção a solucionar o problema. Colocar-se em marcha baixa a angústia e, ao baixar a angústia, vemos com maior clareza. E, desse modo, tomamos as melhores decisões. Assim, se o problema tiver uma solução, provavelmente a encontraremos. Por outro lado, descobrimos que o problema nunca é tão grande quanto parece naquele momento e que nunca devemos desistir.
“Frente a um problema de grandes dimensões, talvez insolúvel, só resta fazer uma coisa: dar um passo”
Pedro Friedrich
Em geral, acredita-se que, para ter um negócio consciente, é preciso resolver claramente um problema social. Vocês fabricam compressores de gás. Como sua empresa ajuda a construir um mundo melhor? Em algum momento, nos fizemos a pergunta ácida: quanto mais cresce meu negócio, é melhor ou não para o mundo? E a resposta não era tão clara, mesmo criando postos de trabalho, tendo boas práticas e tudo mais que queira. Estou certo de que encher o mundo com projetos ou produtos que fazem combustão a gás não é a solução para o planeta. O Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), usado em indústrias e em residências, é um combustível fóssil. Ainda que o fogão a gás emita 50% menos de gases de efeito estufa em relação ao forno elétrico, isso não a torna uma energia limpa. Decidimos criar uma unidade de negócios focada em energias renováveis. A ideia era atingir zonas remotas, não atendidas por redes de energia. Pensamos: bom, é para essas pessoas que queremos criar produtos e também para os que não têm acesso à água. O bombeamento de água, movido à energia solar, parecia ter uma lógica de atender à nova economia e, ao mesmo tempo, às pessoas mais necessitadas. Em 2014, nos certificamos como uma Empresa B, isto é, com um modelo de negócio que gera valor para todos os públicos de maneira intencional e não apenas para os acionistas.
O que vem depois da certificação? No ano seguinte à certificação, começamos uma nova unidade de negócios. É muito bom que todas as empresas se certifiquem, comecem a tomar consciência e se movam o mais rápido possível para somar os 200 pontos do questionário do Sistema B (é preciso 80 para conseguir a certificação), mas me parece que não é suficiente. Muito mais tem que ser feito e é por isso que nós ainda procuramos o que falta para sermos mais felizes com nós mesmos e criarmos um modelo de alto impacto positivo para o planeta.
O que mais você faz em relação a isso? O termo sustentabilidade está um pouco banalizado. A vontade era fazer algo mais profundo e, por isso, definimos que a primeira meta era a de lixo zero e isso quer dizer não gerar resíduos que não sejam recicláveis ou que não possam ser reduzidos, reutilizáveis, renunciados ou eliminados completamente. Temos ainda uma fração muito pequena - um saco recolhido por dia e entregue ao serviço público. Mas já criamos uma composteira e tudo de orgânico gerado já não vai para o lixo, é usado em hortas, inclusive para a casa dos funcionários. Também contratamos uma empresa que nos entregou recipientes e nos deu treinamento para tratar e classificar o lixo, que depois é compactado e vendido e doado a uma instituição chamada Reciduca, que promove oficinas de treinamento para pessoas marginalizadas. Nós também acolhemos os egressos dessas oficinas como fonte de trabalho. E, com isso, fechamos um círculo mágico.
“Medir a felicidade não é para simplesmente dizer “somos os mais felizes”. É trabalhar pelo que mais importa, que é a felicidade de todos”
Pedro Friedrich
Vocês também têm uma preocupação com a neutralização da pegada de gás carbônico que abrange um grande período de tempo. Pode falar um pouco sobre isso? Quando nos certificamos em 2014 como uma companhia B, nós tivemos que medir nossa pegada do carbono e descobrimos quantas toneladas de dióxido de carbono lançávamos na atmosfera. Com a documentação de consumo, nós cruzamos a energia consumida com a quantidade de produtos fabricados e chegamos à curva de emissões desde os anos 1970, quando a empresa foi fundada. É todo o carbono emitido na história da companhia. Como dono da empresa, eu publicamente declarei que esta dívida é a que temos com as gerações futuras e que estamos dispostos a pagá-la. A Universidad Nacional de La Plata (UNLP) estudou o crescimento espontâneo dos quatro sistemas florestais da Argentina e, com isso, conseguimos saber quantos hectares de florestas, de mata nativa, seriam necessários e em quanto tempo, para, assim, regenerar todo o carbono que emitimos. A surpresa foi que era pouco mais de quatro hectares. Nós decidimos regenerar seis hectares, que já estão crescendo em um campo que tinha sido desmantelado para a agricultura de milho. Nós chegamos para o dono da propriedade e propusemos alugar este campo, que ele teria que cuidar por 25 anos, que é o suposto tempo necessário para a vegetação atingir espontaneamente o clímax. E, assim, nós saldamos a dívida desde os anos 70 até 2014, mais as emissões atuais e as futuras pelos próximos 25 anos.
E os colaboradores, como vocês olham para eles? Nós trouxemos o índice de felicidade do Butão e o aplicamos na Argentina com ajuda de alguns psicólogos, que o adaptaram para o Ocidente. Esse questionário extenso, aplicado em 2017, nos permitiu trabalhar áreas complicadas do nosso público. Há duas pessoas, que não sabemos quem são, que responderam que, se algo grave acontecesse, elas não teriam a quem recorrer ou a quem pedir ajuda. E, quando nos reunimos para encontrar uma solução, alguém trouxe a ideia maravilhosa de fazer uma cadeia telefônica, em que cada um escolhe quem chamará caso aconteça algo sério. Isso já está acontecendo e suponho que, para essas duas pessoas, isso seja um grande alívio. Este é um bom exemplo de como medir a felicidade não é para simplesmente dizer “somos os mais felizes”. É trabalhar pelo que mais importa, que é a felicidade de todos.
E como você lida com a busca pelo propósito? Tem a ver com a pergunta ácida que fizemos lá atrás, sobre o crescimento do negócio ser positivo ou não. O melhor é não nos metermos em qualquer tipo de negócio se a resposta não for muito clara, ainda que seja muito rentável. Eu, pessoalmente, preferi buscar negócios com propósitos claros. Não faço mais nada que não tenha propósito ou que não some propósito em minha vida de alguma maneira.
“Tem que trabalhar muito, mas há esperança de que o mundo não acabará de forma tão terrível como indicam as estatísticas atuais”
Pedro Friedrich
É por isso que investiu em projetos tão distintos e que até envolveram a sua família. Creio que eu e os meninos tivemos um aprendizado muito importante, porque a visão da época já era que o planeta estava em uma situação muito complicada. Eu fui próximo do fundador da empresa North Face (de roupas esportivas), Douglas Tompkins. Se você conversasse com ele, veria que não tinha uma visão muito otimista. Nós falávamos sobre o que fazer com os nossos filhos diante de um mundo completamente apocalíptico. Eu cresci em um mundo infinito — ao contrário dos meus filhos, que têm algo tão pesado pela frente, de viver em um mundo que dura 20, 30 ou 50 anos mais e, em seguida, acaba ou se torna extremamente desconfortável para habitar. Então, comecei a falar sobre isso com as crianças, inclusive, sobre buscar uma solução mental para eles. Como ter uma vida normal em um mundo que tem uma mensagem tão complicada? E a resposta teve um pouco a ver com a minha experiência na neve de se colocar à frente do problema. É preciso enfrentá-lo e desafiá-lo, colocando-se na linha da frente. Esses não sofrem — podem morrer, mas não sofrem. Têm adrenalina e alta motivação. Eu queria que eles aprendessem a viver dessa maneira, na primeira fila, sendo protagonistas e lutando pelo que têm. Temos que passar essa mensagem a nossos filhos: não fiquem na segunda fila, onde não se vê muito claramente o que está acontecendo, e isso causa aflição.
Você é otimista? Se não fizermos nada, o mundo vai para onde as Nações Unidas e os cientistas do IPCC dizem, mas o bem cresce exponencialmente e o mal está desacelerando, dando-nos uma chance real. É importante não cair na armadilha da nossa mente, que não é capaz de imaginar algo que cresce de forma exponencial. Por mal, refiro-me fatos como a quantidade de petróleo que está sendo extraída, o carbono que está queimando, gente morrendo em guerras, o aumento demográfico. O que é bom é a quantidade de jovens que saíram para protestar, as ONGs criadas, os gigawatts/hora de fontes renováveis, as leis que obrigam a substituição de plásticos ou a proibição de descartáveis, as bicicletas nas cidades, os carros elétricos em desenvolvimento e várias iniciativas que estão crescendo de uma maneira incrível. Há uma ampliação da consciência em aceleração e afetando os negócios. Nós precisamos ter consciência disso e garantir que os nossos filhos saibam. Tem que trabalhar muito, mas há esperança de que o mundo não acabará de forma tão terrível como indicam as estatísticas atuais.
Créditos
Imagem principal: Vitoria Bas
Rodrigo Cunha é autor deste texto, parte de uma série feita a partir de entrevistas que realizou para seu projeto autoral Humanos de negócios www.humanosdenegocios.com.br | Ilustração: Vitoria Bas