Eu não aguento mais

por Douglas Vieira
Trip #274

Niéde Guidon, responsável por resgatar do abismo um dos mais importantes sítios arqueológicos do mundo, está (de novo) prestes a largar tudo

Niéde Guidon fez história ao reescrever a pré-história. Sua pesquisa iniciada nos anos 70 deu nova direção a tudo que se sabia sobre a ocupação da América do Sul. Niéde, no entanto, está muito cansada. Aos 85 anos, ela fala com a voz e os suspiros de quem já não suporta responder sobre as inevitáveis e recorrentes questões políticas ligadas ao Parque Nacional da Serra da Capivara, declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco, em 1991. “Tem que perguntar ao ICMBio”, diz, endereçando ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, qualquer questão burocrática associada ao sítio arqueológico localizado no Piauí.

A imagem da arqueóloga é há décadas indissociável das pinturas rupestres localizadas no estado, às quais Niéde dedica sua longa trajetória científica. Foi a partir desse trabalho que, mais do que desvendar traços comportamentais dos antigos habitantes daquela região, se determinaram novos parâmetros temporais acerca da presença do homem na América do Sul. “Ela redesenhou a história da pré-história e, quando você fala das Américas, tem um impacto em todo o desenho da expansão do homem pelo planeta”, explica Marcello Dantas, curador de arte e documentarista, que conhece Niéde há 20 anos e integra atualmente a equipe de criação do Museu da Natureza, em fase de construção, no parque. “É um negócio ambicioso, com 4.000 metros quadrados, luxo e a mais alta tecnologia”, conta Dantas.

A nova área expositiva tem vista para um dos grandes atrativos da área, a Pedra Furada, onde haverá também um auditório. O conceito expográfico se propõe a organizar o material de quatro décadas de pesquisas, construindo uma cronologia evolutiva dos eventos geológicos e paleontológicos desde as origens da região até o período contemporâneo. A construção do Museu da Natureza, porém, convive com as recorrentes batalhas de Niéde contra a falta de recursos.

Através da Fundação do Museu do Homem Americano (Fumdham), uma entidade civil sem fins lucrativos criada por ela e outros pesquisadores em 1986, Niéde atua em muito mais frentes do que deveria e precisa lembrar com frequência, inclusive o próprio Estado, de que não é ela a responsável pela manutenção e administração do Parque Nacional da Serra da Capivara. Não que não faça isso de alguma forma.

O aeroporto, inaugurado em 2015, assim como o hotel de São Raimundo Nonato, estão na conta do ativismo da pesquisadora, nas tentativas de explorar o potencial turístico. “Patrimônios da Humanidade no mundo todo recebem 5 milhões de turistas por ano, enquanto aqui...”, pensa uma Niéde desolada sobre os cerca de 25 mil visitantes anuais do Parque. “Ela é uma superativista social, que criou uma maneira sustentável de fazer com que a população do entorno valorize aquele contexto. E isso é também genial, que ela seja capaz de um empreendedorismo que fez com que as pessoas que moram naquele lugar hoje tenham um emprego, estudem numa faculdade de arqueologia... Ela ativou a comunidade para um nível de transformação que pouquíssimos projetos conseguiram”, diz Dantas.

Os primeiros americanos

Niéde descobriu em 1963 a existência das pinturas que mudariam sua vida e a fariam trocar os arredores de Paris por São Raimundo Nonato, uma cidade de 32 mil habitantes. Em uma exposição realizada naquele ano no Museu Paulista, no bairro do Ipiranga, em São Paulo, sobre a arte rupestre de Minas Gerais, foi abordada por um morador da cidade piauiense, que contou sobre a existência de vestígios semelhantes por lá. A pesquisadora foi conferir a história dez anos mais tarde, em uma expedição franco-brasileira. Professora em Paris, ela visitava sistematicamente a região com seus alunos, mudando-se em definitivo para lá em 1992.

Seu trabalho deslocou em alguns milhares de anos o que se sabia sobre a presença humana no continente. “Somente agora nos Estados Unidos encontraram registros mais antigos do que os nossos. Aqui, estamos na base dos 160 mil anos, lá, eles já têm um sítio com mais de 240 mil”, conta. E seu trabalho desafia a história de abandono patrimonial escrita continuamente no Brasil. Quando desembarcou na região, não havia nenhuma estrutura onde hoje, pelo trabalho da Fumdham, existe um rico ambiente científico, com arqueólogos do mundo todo. “Em São Raimundo Nonato nós temos laboratórios de nível internacional, profissionais que foram formados por nós – inclusive agora tem a Universidade Federal do Vale do São Francisco, que tem um curso de arqueologia e outro de ciências da natureza – e pesquisadores de alta qualidade que trabalham aqui frequentemente, da França, Alemanha, Inglaterra...”, se orgulha Niéde.

A história se repete como tragédia

Com todo o legado construído no município, era justo imaginar uma rotina dedicada exclusivamente à ciência. Mas não é assim. “Estou neste momento assinando os avisos prévios de todos os funcionários, porque Brasília não mandou até hoje os recursos para 2018”, conta, exaurida. Sem equipe, o parque permaneceria fechado – ou melhor, exposto: “Ficaria totalmente aberto, já que esses funcionários cuidam das entradas”, reflete Niéde, que lembra o episódio recente em que um guarda foi morto por caçadores – “Que ainda estão soltos por aí.”

A situação não é, infelizmente, nenhuma novidade. A pesquisadora já precisou fazer essa mesma manobra diversas vezes. Em outras oportunidades, o dinheiro chegou em cima da hora, o pagamento dos funcionários foi garantido, e o parque seguiu em funcionamento. Até o fechamento desta edição da Trip, o padrão ainda não havia se repetido.

O que é certo é que o ativismo científico da arqueóloga pede um justo descanso e ela acena com a aposentadoria. Niéde diz que a abertura do Museu da Natureza pode marcar sua despedida do parque. “Será inaugurado em dezembro e, logo depois, eu volto pra França e não quero mais saber. Não tem futuro”, afirma, ainda em São Raimundo Nonato. Quem convive com ela, porém, prefere não acreditar. “Eu não acho que ela vai. Ela ficará lá, será mumificada no parque”, sentencia Dantas. E Niéde mesma alimenta esperanças: “Se chegarem os recursos, a gente continua”.

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